sexta-feira, 14 de abril de 2017

Depoimentos

As vicissitudes de ser estrangeiro no Brasil: Um caso de Xenofobia na Prefeitura de Arroio do Meio, RS

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Em outubro de 2016, participei de um processo seletivo no citado município por convite do prefeito do momento; o citado processo convocava a médicos a participar de um processo seletivo para preencher o cargo de Médico da ESF Bela Vista, bairro do município.
Acatando os quesitos estabelecidos, apresentei a totalidade dos documentos exigíveis: Isto é, registro do Conselho Federal de Medicina, sendo que sou médica com título devidamente validado no país e com registro no estado de Rio Grande do Sul; CPF, RNE, pois em aquele momento meu RNE permanente já estava sendo tramitado perante a Direção da Policia Federal; conforme a dito trâmite, a Policia Federal entregou-me um protocolo com validade limitada no tempo , até quando fosse expedido o documento definitivo; isto é, de residente permanente no país.
De conformidade com o termo de permanência que aparecia no protocolo da Policia e na validez da Carteira do trabalho que era o dia 28 de março de 2017, foi elaborado o contrato da referência, entendendo-se que o requerimento era para um ano e que uma vez foram apresentados meus documentos (RNE permanente e carteira de trabalho) com o novo prazo, seria feito o aditivo do contrato. A entrega dos documentos definitivos, aconteceu aproximadamente um mês depois de ter assinado o contrato, pelo qual de maneira imediata fiz entrega da documentação definitiva ao Departamento de Pessoal, a Assessoria Jurídica da Prefeitura e naturalmente fiz partícipe a meu chefe imediato, o senhor secretário de saúde.
Porém, o aditivo do contrato não foi feito em aquele momento. O secretário de saúde Gustavo Zatinelli, o procurador municipal, Rogério Marchioretto e a chefe do departamento de pessoal me informaram que não devia preocupar-me por dito termo, pois este seria feito uma vez fosse a cumprir-se o termo do contrato inicialmente estabelecido, pois era claro que conforme ao edital e a necessidade criada, o contrato seria mínimo por um ano prorrogável até dois .
Durante o tempo de meu serviço, desde o dia 21 de novembro de 2016 até a data, ofereci meus serviços com plena aderência aos preceitos éticos e técnico científicos que orientam minha profissão. Minha chegada significou para a população a subversão do modelo de atendimento ao qual estavam acostumados:
Atendimentos breves, com prontuário praticamente inexistente, em muitos casos com renovação automática de receitas de medicamentos controlados, sem importar comorbidade, idade de pacientes, nem necessidade de acompanhamento clínico.
No começo, recebi solicitações expressas de pessoal administrativo da Secretaria para que fornecesse conforme ao costume medicamentos com alto risco de criar dependência física, psicológica e riscos específicos entre eles suicídio em um município tristemente célebre por suas estatísticas em transtornos afetivos e  suicídio.
Foi preciso responder protocolos de alguns pacientes que demandavam as receitas que foram fornecidas durante anos, sob os riscos que isso representava para seu próprio bem-estar; explicar através de informes e comunicados ao pessoal a necessidade de fazer uso racional de medicamentos controlados, conforme aos protocolos da AMB de psiquiatria e até gravar e distribuir vídeos informativos.
A comunidade passou de ter atendimentos fugazes e superficiais, a avaliações com abordagem holístico onde cada pessoa era objeto de atenção integral e não apenas sintomas espalhados no tempo.
No lapso de só 4 meses, a população fez manifesta sua satisfação com um modelo humanizado com um alto grau de prevenção na abordagem; além dos atendimentos feitos na consulta do posto de saúde, fiz visitas domiciliárias a pacientes acamados ou idosos com necessidades especiais; realicei consultas no presídio municipal; efetuei atendimentos no Distrito de Forqueta semanalmente; apresentei  por iniciativa própria informes de gestão como um mecanismo para fornecer um apoio à administração e uma retroalimentação efetiva na toma de decisões; fiz alguma palestra na Escola do bairro onde fica localizado o Posto de saúde e propus ações diversas que visavam garantir o manejo integral da população a través de estratégias como “Alfabetização em saúde: porque para exercer teus direitos deves estar informado”.
Desde um mês antes de finalizar o prazo de terminação do contrato, comecei a solicitar novamente às oficinas de pessoal e jurídica o aditamento do contrato. Inicialmente o secretário me informou que era óbvio que o contrato seguiria seu curso conforme ao estabelecido no edital sem que fosse preciso fazer renovação nenhuma; porém, perplexa perante a informalidade da administração, decidi perguntar diretamente com o Departamento de Pessoal, o qual, no dia 03 de março me informou que o Secretario de saúde devia fazer o requerimento do aditamento.
Conforme ao pedido, o Sr. Secretario encaminhou o requerimento segundo protocolo do dia 13 de março. Vale dizer que em nenhum momento tive informação em contrário respeito ao aditamento do contrato conforme ao edital; pelo contrário, me foram agendadas atividades por parte da Secretaria de Saúde por conduto da Enfermeira tida como coordenadora da ESF; fui invitada a participar de jornadas de vacinação noturnas, das quais participei em duas sessões em Palmas, 13 de Maio, Morro São Roque e Forqueta Baixa, sendo-me informado que poderia cobrá-las como Horas Extra ou fazer um Banco de Horas em caso de precisar de alguma folga a posteriori para meus trâmites pessoais.
Por parte da administração, pois,  existiu uma clara e incontrovertível geração de expectativa na continuidade do contrato conforme ao edital, situação plenamente verossímil tendo em conta a resposta da população ao modelo de atenção oferecido.
O dia 28 de março tendo em conta que não tinha nenhuma resposta ao pedido de aditamento, que a carteira de trabalho não estava comigo desde  três semanas atrás, pois foi entregue ao Secretário de Saúde para os trâmites pertinentes, fiz uma comunicação a Assessoria Jurídica através da qual pedia um pronunciamento oficial.
Às 16 horas chegou ao posto de saúde um dos motoristas para procurar-me e conduzir-me a Prefeitura conforme encargo não soube de quem. Em Pessoal me foi entregue uma estranha comunicação dirigida pelo jurídico da Administração ao Prefeito, a qual está assinada pelo Sr. Leandro Tascón Casser, assessor jurídico da Prefeitura, mesmo que deu visto de aprovação ao contrato inicial. No parecer recente, o Sr. Tascon informava que o contrato não podia ter aditamento em atenção a minha condição de estrangeira.
Segundo o Sr. Tascón, “inexiste legislação municipal que preveja a possibilidade de contratação temporária de estrangeiros, o que inviabiliza a possibilidade de contratação temporária e/ou o aditamento do respectivo contrato”…
A premissa anterior resulta plenamente contraditória, tendo em conta que:
  1. O contrato assinado o dia 21 de novembro, foi feito desde o conhecimento de minha qualidade de estrangeira.
  2. A inexistência de uma lei municipal que permita explicitamente a contratação de estrangeiros, não gera proibição nenhuma, sendo que ao tenor da Carta Constitucional do Brasil, em especial o artigo 5º,  os cidadãos estrangeiros gozam dos mesmos direitos no território brasileiro que os cidadãos nacionais, pois o contrário vulnera o direito a igualdade e configura um ato de discriminação em atenção à nacionalidade.
  3. Semanas atrás recebe um chamado verbal de atenção por parte de meu chefe o Sr. Secretário de Saúde quem me informou que a prefeitura estava restringindo as cotas para a realização de exames médicos, o qual pode ser evidenciado pela população que tem que dispor de seus próprios recursos para arcar com os custos de exames que antes eram garantidos através do SUS conforme a seu direito á saúde e por conexidade à vida. Em resposta ao chamado, eu salientei a comunicação que já tinha sido enviada ao Sr. Secretário através do informe de gestão No 2, por médio do qual fazia explícitos os suportes que davam lugar as distintas solicitações de exames complementários; ditas comunicações estiveram sempre suportadas pelas diretrizes da Associação Médica Brasileira, as diferentes sociedades cientificas existentes no país, o Ministério de Saúde e entidades de reconhecido prestígio como os Hospitais Israeli e Oswaldo Cruz.
  4. Em todo momento, fui clara e coerente com minhas atuações profissionais, mas houve várias oportunidades nas quais a Administração parecia não estar cômoda com critérios que ponderavam a qualidade acima de critérios eficientistas ou populistas como administrar medicamentos a pacientes sem indicação clínica como se tratasse de um cardápio gastronômico em detrimento de seu próprio bem-estar. Ao respeito, conto com a totalidade de comunicações geradas sobre o particular.
Em consideração aos fatos anteriores, cabe então perguntar-se:
  1. Será que a Administração atual em cabeça do senhor prefeito do Município,  Sr. Klaus Werner Snacks aceita e fomenta práticas xenófobas contrarias ao Estado Social de Direito e à necessidade imperativa de consolidar democracias que respondam a uma ética global?
  2. Será que o parecer jurídico fornecido pelo Sr. Tascón, cheio de contradições de fato e Direito e contrário à Constituição e aos Tratados Internacionais é só um ato de obediência a uma decisão da administração que reclama minha cabeça por ter agido conforme à Lex Artis em defesa dos interesses da população e talvez não dos critérios economicistas hoje privilegiados?
  3. Será que a população de Bela Vista terá que sofrer as consequências do modelo de atendimento itinerante por conta de um modelo que lhe aposta a quantidade acima da qualidade?
  4. Será que estou pagando o custo de agir conforme a Direito e não partir e distribuir medicamentos nocivos para a população provavelmente envolvidos em casos de suicídio, quedas e depressões refratárias?
  5. Será que por ser estrangeira não tenho direito ao trabalho digno e minhas competências são denegridas pelo simples fato de não ser brasileira nata? Esta é uma pergunta absurda, tendo em conta que transitamos pelo século 21, o século da globalização.
Atenciosamente,
Dra.Sandra Lorena F. Guzmán
Médica COLOMBIANA
Residente no Brasil
CREMERS 42157
Jornalista
Publicado também na página Jusbrasil
Fonte imagem: Jornal o Informativo