domingo, 4 de agosto de 2013

Notícias

UMA VIDA EM TRÂNSITO

Segundo a tradição de família, Eloísa Martin* teve uma trajetória bastante atípica. Nascida em Bahía Blanca, com o pai advogado e mãe dona-de-casa, com quatro irmãos – isto mesmo, todos homens, menos ela – esperava-se da filha mais velha uma boa formação e que continuasse a seguir a vida baseada nos valores tradicionais, tudo isso com filhos e perto de “casa”. Entretanto, tradição não foi bem o caminho que a seguir.
Uma carreira não era um fator tão esperado. Eloísa foi a primeira mulher de sua família a se formar no ensino superior. Escolheu Sociologia, apesar de querer fazer Cinema, Artes, Relações Públicas… enfim, tantas áreas que uma desenvoltura de 17 anos não permitiria escolher tão depressa. A orientação vocacional e os horários flexíveis da carreira profissional que o curso lhe proporcionaria contribuíram para a escolha. Não foi simples convencer os pais a se mudar para Buenos Aires. Foi um choque.
A Universidade de Buenos Aires promovia ao aluno um senso de autonomia muito grande. Um senso além do necessário, na realidade. Isso se dava pela má infraestrutura da faculdade, que subjugava o aluno à sua persistência em querer uma formação satisfatória. De qualquer forma, isso teve seu valor positivo.
Esta persistência permitiu à Eloisa encontrar um professor, fora da UBA, que a ajudasse com sua linha de pesquisa, religião, e este mesmo professor a indicou que começasse seus estudos de mestrado no Brasil. Eloísa chegou a pensar em França, Inglaterra, mas por fim concordou com a sugestão de seu orientador. E aí, começava mais uma transição.
O Brasil, de fato, tornaria as coisas menos bruscas em mudanças. Segundo o seu mentor, a cultura era um pouco semelhante e o campo de trabalho era próximo à região Sul, onde Eloísa se instalou. Menos bruscas não significam não-bruscas. Muito menos, para a família, que entrava em estado de choque mais uma vez.
Após o mestrado no Rio Grande do Sul, Eloísa partiu para o doutorado no Museu Nacional, Rio de Janeiro. As notícias sobre a cidade não eram nada boas, o clima de insegurança era grande. Ao realizar o doutorado, a surpresa viria na aprovação dos candidatos: nos primeiros 10 lugares, a maioria era de argentinos. Fez-se o bafafá. Eram 55 candidatos, e metade das vagas iriam para os estrangeiros, que eram, sobretudo, os primeiros colocados.
No doutorado, pelo número de argentinos, havia lá seus rituais para lembrar das origens. Estava aí uma coisa que entediava Eloísa. “Estamos no Rio, vamos fazer coisas de cariocas!”. Eloísa não é lá a maior entusiasta de guetos… isso não quer dizer que não carregava afeto e algumas saudades. No Brasil, parece que não há o hábito de se discutir política, de saírem de uma conversa de bar verdadeiramente magoados, coisa que sente muita falta.
Na metade do doutorado, voltou para a Argentina, e complementou a bolsa que recebia do Museu com uma no país. O medo da vez era o que fazer após o fim do doutorado. O espaço de trabalho no Brasil não estava em boa situação naquele momento. Eloísa fez então, perto do fim de seu curso, um concurso para o CONICET, no qual passou. Ficou também três meses na Noruega, antes de ser efetivada no novo emprego. Para a entrevistada, não havia nada de glamoroso nisso. Era tudo questão de sobrevivência.
A readaptação na volta ao país de origem não foi das melhores. Evidentemente, “o mundo continuou a rondar sem sua presença”. Uma boa parte dos amigos estava com filhos, outra não estava mais na cidade. Não estava mais habituada com a forma de vida, sentia um estranhamento. As redes, os laços, a política, já não eram mais os mesmos. E as formas de sociabilidade pareciam estranhas.
Seu futuro marido, brasileiro, começou a procurar empregos na Argentina. Mas, mais uma vez, peça do destino, abriu uma vaga na Universidade de Brasília. Era, portanto, um lugar mais perto de onde o namorado morava, e, logo, uma nova possibilidade. Possibilidade esta que tinha seus custos; foi difícil sair de um emprego com estabilidade sem saber o que seria do futuro, e a impressão que tinha era que nunca, nunca ninguém havia se demitido de um posto de concursado.
Já na primeira reunião de departamento da UnB, uma antiga professora joga na mesa sua profunda mágoa que a nova contratada tenha passado. Estava ressentida por seu orientando não ter passado, para dar lugar a uma “morta de fome vinda da Argentina”. Entretanto, fazer seu trabalho bem era angariar bastantes elogios, e foi o que aconteceu. Logo na primeira turma foi eleita a homenageada.
Ainda na Universidade de Brasília, fez rapidamente amizade com uma das professoras. Ela era argentina também. Mas é muito importante pontuar que ambas não eram amigas por causa de sua origem. A amiga, um dia, a confidenciou, como um desabafo, uma declaração: “Eu sou sua amiga porque você é legal, temos o senso de humor porcaria, mas não, não mesmo, não sou sua amiga por você ser argentina também”.
A rotina de viajar para ver o namorado ainda era um pouco difícil, mesmo morando em Brasília. Eloísa começou a pensar em formas de conseguir uma vaga no Rio de Janeiro. Pensou em transferência, mas o medo de ser alocado em “qualquer-vaga” foi grande. Mais uma vez, o destino conspirou em favor e uma vaga para o Departamento de Sociologia da UFRJ abriu. Preparar um concurso e estar trabalhando ao mesmo tempo era difícil. Segundo Eloísa, “por sorte” passou. “Sempre tem um pouco de sorte”. O que parece, entretanto, é bastante mérito. E o Departamento da UnB ficou a se perguntar o que fizeram para professora tão boa partir.
Ir para o Rio era o sonho feito realidade, sobretudo por estar na UFRJ. Eram, em menos de 7 anos, bruscas transições, mudanças de países, de estado, onde se perde muita coisa, de afetividade, de investimentos. “Se algo definir que eu devo mudar mais uma vez, eu mudo. Se amanhã aparece um projeto melhor, uma leitura mais interessante, eu parto. Minha vida virou uma vida em trânsito. Nada é definitivo”.
A impressão que fica, após tantas mudanças, é que as mudanças são mais sentidas pelo tempo de estadia do que algum tipo de choque. Mas, se é para sentir mudanças, que sejam sentidas.
Bárbara Machado
*Eloísa Martin é professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, vinculada ao Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário