Do trabalho pesado ao futebol: Europa discrimina, mas precisa dos imigrantes
Título de Portugal na Europa pós-Brexit contou com gol de jogador de Guiné-Bissau
O título da Eurocopa 2016 conquistado por Portugal neste final de semana, com uma equipe formada em grande parte por imigrantes, ajudou a reforçar o debate sobre a relação destes com os europeus, e mesmo sobre a legitimidade do espírito nacionalista que envolve essas conquistas esportivas. O futebol português tem uma grande dívida com imigrantes e ex-colonizados. O moçambicano Eusébio, por exemplo, foi o grande líder da seleção portuguesa que conseguiu chegar à semifinal da Copa do Mundo em 1966, contra a Inglaterra.
Quando Cristiano Ronaldo, nascido na portuguesa Madeira, dedicou a vitória deste domingo (10) aos portugueses e imigrantes, seu discurso se alinhou ao debate fortalecido depois que o colega Éder, nascido na ex-colônia Guiné-Bissau, na África, fez o gol da vitória contra uma França também amparada por Pogba, filho de um casal de Guiné. Dos 23 campeões portugueses, nove nasceram em outros países. Além de Guiné-Bissau, há atletas de Cabo Verde, Angola e até França, Alemanha e Brasil.
Éder, herói de Portugal, nasceu na África
Portugal tem uma relação histórica específica com imigrantes, mas a dependência da mão de obra destes se assemelha à vista em outros países europeus -- o que não é diferente em relação ao futebol. O vínculo sempre esteve ali ao longo das últimas décadas, mas nunca garantiu que tal necessidade impedisse que um sentimento de repulsa viesse junto. Apenas no final de semana após a aprovação do Brexit, o Reino Unido registrou mais de cem casos de xenofobia, de acordo com o jornal Independent, entre insultos e crimes de ódio.
"A Europa tem uma rejeição, um racismo, mas ao mesmo tempo precisa dos imigrantes, que têm um papel muito importante no continente, principalmente os das ex-colônias. Esses países, Portugal, França, Bélgica, Inglaterra, eles hoje em dia são obrigados a receber imigrantes, em parte porque alguns têm direito, mas muitos também porque a Europa precisa desse trabalho. O fato de serem esportistas profissionais facilita que eles obtenham o visto", destaca Helion Póvoa Neto, professor do IPPUR-UFRJ, onde coordena o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios [NIEM].
Póvoa Neto explica que "os imigrantes são discriminados, mas necessários". Eles atendem às necessidades do mercado de trabalho europeu, principalmente em relação às funções que oferecem os piores salários e menor prestígio. Por outro lado, surgem espaços para exceções como as vistas no futebol e na música, e imigrantes se tornam ídolos entre demais imigrantes e descendentes de imigrantes, mas também entre os europeus.
Em muitos países da Europa, a taxa de mortalidade é superior à natalidade. Trata-se de um continente em processo de envelhecimento, ressalta Póvoa Neto. Existe uma necessidade de trabalhadores jovens, e os imigrantes atendem a isso.
De acordo com Póvoa Neto, Portugal conta com muitos imigrantes de ex-colônias na África -- Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique. Nos anos 1960, com muitos portugueses emigrando do país, Portugal precisou trazer imigrantes para fazer o trabalho pesado. Os primeiros foram principalmente cabo-verdianos e guineenses.
"Portugal não era um país de imigrantes, mas principalmente de emigrantes. Mandava muitas pessoas para o Brasil, Venezuela, Canadá Estados Unidos, e também para outros países na Europa, como França, Alemanha, Suíça", explica o professor.
Os primeiros imigrantes que Portugal recebeu vieram justamente de Cabo Verde e Guiné-Bissau. Quando acabou a ditadura, em 1975, com a Revolução dos Cravos, as colônias ficaram livres e Portugal começou a receber os portugueses brancos retornados -- alguns tinham nascido em Portugal mas muitos eram das colônias. As antigas colônias ficaram independentes, o que facilitou acordos para a entrada da população desses países.
Ao mesmo tempo, pessoas negras que eram das colônias -- Cabo Verde e Guiné-Bissau e também Angola e Moçambique -- foram se integrando. Têm direitos, mas são muito discriminados, situação parecida com a dos negros no Brasil. "No futebol, muitos jogadores têm origem nessas ex-colônias. Assim como Portugal precisava de mão de obra na construção civil e no comércio, também precisava muito no futebol, o que não é uma exclusividade de Portugal. Vários países europeus seguem este mesmo exemplo, como a própria França", disse o professor. Grande parte dos jogadores da seleção francesa - que disputou a final com Portugal - é descendente de africanos e árabes, assim como o maior jogador francês da história, Zinedine Zidane, que era argelino. "A Holanda também tem muitos jogadores das ex-colônias, assim como a Bélgica", acrescentou o professor.