Migrações: a polêmica global cresce no Brasil
– ON 06/02/2017Por que nova lei, agora no Senado, é decisiva e perigosa? Como o Brasil continua a atrair, apesar da crise e do golpe? Quais os nexos entre neoliberalismo e xenofobia?
Bela Feldman, entrevistada por Rodrigo Farhat
É necessário votar urgentemente a Lei de Migrações, sustenta a antropóloga Bela Feldman-Bianco, coordenadora do Comitê Migrações e Deslocamentos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Nesta entrevista, a representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) no Conselho Nacional de Imigração (CNIg) fala sobre a importância das organizações da sociedade civil, igrejas e dos próprios coletivos de migrantes nas políticas de integração ao país. Ela afirma que, apesar da crise, o país continua atrativo para cidadãos de todo o mundo.
Por que a legislação brasileira precisa ser atualizada?
O Estatuto do Estrangeiro, de 1980, é baseado em “segurança nacional” e considera os imigrantes como um “caso de polícia”. Inúmeros artigos dessa legislação estão em contradição com a Constituição de 1988. São um atentado ao processo de redemocratização do Brasil. O artigo 107 do estatuto impede aos estrangeiros o direito de manifestação política e sindical — enquanto, segundo a Carta, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Quais os pilares da nova Lei das Migrações?
A nova lei é um amálgama de pelo menos três anteprojetos de lei: PL 5655/2009, conhecido como projeto Lula; PLS 288/2013, de autoria do senador Aloysio Nunes; e o Anteprojeto de Lei das Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, formulado em 2014 por uma “comissão de especialistas”, criada no âmbito da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça.
A última versão (PL 2516/2015), revisada pelo relator, deputado Orlando Silva, foi aprovada em julho de 2016 pela Câmara de Deputados. Após longa espera e mobilizações, foi finalmente instituída cinco meses depois, em dezembro. Aprovada (207 votos a favor, 83 contra e uma abstenção), voltou ao Senado, casa de origem. Há urgência em sua aprovação pelo Senado e sanção presidencial, porque se trata de legislação mais humana e justa, que considera os migrantes como sujeitos de direitos, apesar de apresentar anacronismo no que se refere ao aumento da securitização.
Paradoxalmente, essa nova lei, ao mesmo tempo em que facilita a permanência de imigrantes no país, dificulta a entrada e amplia a possibilidade de expulsão de imigrantes. Espera-se que o foco nos direitos humanos seja mantido e, ao mesmo tempo, que seções e artigos relativos à securitização e às condições de expulsão sejam drasticamente reduzidas e descartadas.
A história das migrações para o Brasil indica que não existe fundamentação para se considerar, a priori, imigrantes como “problema”, nem para criminalizá-los de antemão. O índice de criminalidade é bastante baixo, já que são pessoas à procura de uma vida melhor. Ao contrário: imigrantes e refugiados de pele negra são os que têm sido alvo, por parte de brasileiros, de manifestações racistas e xenofóbicas, inclusive com violência física e até assassinatos.
Não podemos nos esquecer que as lutas por direitos, contra o racismo e contra a discriminação de gênero ocorrem também no cotidiano dos migrantes. Ocorre no dia-a-dia da burocracia da Polícia Federal, nas mobilizações por moradia, trabalho decente, saúde, educação, por seus saberes e por participação política. Uma legislação mais humana e justa pode direcionar políticas migratórias de acolhimento baseadas em direitos humanos.
Defendemos os direitos dos migrantes, independentemente da documentação, e esperamos que o Senado retire a abundancia de artigos referentes à “segurança nacional”. A Constituição de 1988 precisa ser respeitada.
Historicamente país de imigração, o Brasil se tornou também exportador de migrantes. Ao mesmo tempo, novos imigrantes estão chegando. Como analisa essa “redescoberta” do país?
Não se trata propriamente de redescoberta do Brasil, mas de reposicionamentos do nosso país na economia política mundial em diferentes momentos do capitalismo global. A emigração dos brasileiros para diversos continentes começou a ocorrer durante a recessão econômica das décadas de 1980 e 1990, que atingiu diversos países da América Latina e também países periféricos ou semiperiféricos de outros continentes.
Desde o final dos anos 1980, esses migrantes transnacionais começaram a confrontar restrições à sua circulação no espaço comunitário europeu, devido ao Tratado Schengen. Esse acordo diferenciou cidadãos comunitários (com direito à entrada e circulação e cidadania plena na comunidade europeia) dos cidadãos extracomunitários. Estes começaram a ser distinguidos por meio de categorias duais: os “legais” ou “regulares” (migrantes documentados e com direitos à entrada e circulação no Espaço Schengen e às suas políticas interculturais) e os “ilegais” ou “irregulares” (migrantes sem documentos e sem direitos à entrada no espaço comunitário europeu). Nos Estados Unidos, historicamente país de imigrantes, as leis oscilaram entre a abertura e fechamento dos portões de imigração de acordo com os fluxos da economia. A tentativa de associar migrantes a terrorismo iniciou-se em 1996, com a bomba de Oklahoma, intensificando-se no pós-setembro de 2001, com a Guerra contra o Terror, e agora retomada com estardalhaço e de forma inconstitucional por Donald Trump em sua primeira semana de governo.
As legislações migratórias de diferentes países historicamente diferenciaram migrantes “desejáveis” dos “indesejáveis”. Mas desde a década de 1990, começou a prevalecer nos países centrais a equação entre migração, terrorismo e tráfico, para tentar legitimar a produção da ilegalidade intrínseca às suas políticas draconianas. Nem os refugiados de guerra têm escapado dessa conceitualização e da discriminação e xenofobia. A fronteira, tornou-se metáfora de uma globalização da desesperança. Ao mesmo tempo, floresce dessa produção da ilegalidade uma lucrativa indústria das migrações.
Com 12,3 milhões de desempregados, por que o Brasil ainda é atrativo?
Nas décadas de 1980 e 1990, a conjuntura global direcionou migrantes de antigas colônias para as antigas metrópoles europeias e Estados Unidos. Mas a grande recessão de 2008-2009 resultou num movimento inverso – da Europa para as antigas colônias. Ao mesmo tempo, emergiram as migrações Sul-Sul, entre países periféricos ou semiperiféricos. Nesse período, os projetos desenvolvimentistas do Brasil atraíram tanto migrantes da Europa e dos Estados Unidos quanto da África, da Ásia e de outros países da América do Sul.
Os haitianos, povo diaspórico, começaram a migrar para o Brasil após o terremoto de 2010. Considerados “refugiados climáticos” e não se enquadrando nas regras para obtenção de refúgio (concedido pelo Comitê Nacional para os Refugiados/Conare aos solicitantes que escapam de guerras ou outros conflitos políticos), os haitianos têm conseguido, por meio de resolução do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), obter o visto humanitário para se deslocarem para o Brasil.
Embora os sírios sejam refugiados de guerra, o governo brasileiro também está concedendo a eles o visto humanitário.
Mas vale observar:, no atual contexto brasileiro, de alto índice de desemprego, já há migrantes e refugiados, inclusive os que obtiveram visto humanitário, se deslocando para outros países em busca de melhores oportunidades.
Na ausência do Estado, a sociedade civil seguirá como responsáveis pela complexa questão migratória brasileira?
Além de políticas de acolhimento, há necessidade de políticas de acompanhamento, como bem observou um líder imigrante. Apesar de a Constituição de 1988 garantir direitos fundamentais, o país carece de políticas públicas. Por isso, grande parte das responsabilidades do Estado continua a cargo das organizações não-governamentais, igrejas e dos próprios coletivos e redes sociais de imigrantes e refugiados.
Uma grande vitória das mobilizações desses ativistas, em São Paulo, foi a implementação de uma Coordenação de Políticas Imigrantes na Prefeitura e, mais recentemente, o reconhecimento dessa instância enquanto política de governo. É uma luta de muitos anos, que finalmente tornou-se realidade durante a gestão anterior. Espera-se que tenha continuidade na gestão Doria. Além do mais, como imigrantes e refugiados vivem em cidades, seria essencial que a experiência de São Paulo, que inclui políticas transversais, fosse conhecida e levada a cabo em outros municípios e assim combinar, na prática, políticas de acolhimento com políticas de acompanhamento. O Brasil daria um exemplo a esse mundo conturbado que criminaliza a migração. Mesmo assim, a atuação da Igreja, das ONGs e de outros coletivos de imigrantes e refugiados não se tornariam dispensáveis.
A redução das barreiras migratórias poderia estimular um aumento da produção interna dos países e, por consequência, redução da pobreza em todo o mundo?
A questão migratória é mesmo muito complexa. Para além da necessidade da aprovação pelo Senado e sanção presidencial da nova lei das migrações, temos também que levar em conta que o Brasil se alinhou à ordem mundial por meio de uma lei antiterrorismo e, por conseguinte, maior controle de fronteiras. Trata-se de uma política de criminalização de imigrantes e de judicialização da questão migratória que está sendo exportada por agências multilaterais a todo o mundo.
Existe uma relação intrínseca entre essas políticas e as atuais políticas e a ideologia neoliberal, marcada pela flexibilização do capital e do trabalho e pela terceirização. Concordo com as análises da socióloga holandesa Saskia Sassen. Surgiu uma nova lógica de expulsões na atual conjuntura do capitalismo global, que está aumentando o número de despossuídos, considerados descartáveis. No âmbito das migrações, como mostra o sociólogo argentino Eduardo Domenech, a partir das décadas de 1980 e 1990, surgiram novas formas de organizar e classificar os fluxos migratórios, adotadas também pelos países latino-americanos.
As antigas categorias e classificações de indesejáveis foram subsumidas nas “novas ameaças” estabelecidas pela comunidade internacional, como o narcotráfico, o terrorismo, o tráfico de pessoas e a migração indocumentada. Mais recentemente, na sua primeira semana de governo, Trump adicionou “nacionalidade” as essas “novas ameaças, trazendo à tona lembranças das antigas restrições generalizadas à imigração de chineses, assim como as restrições e perseguições aos imigrantes alemães, japoneses e italianos durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, num período marcado pela Segunda Guerra Mundial e pela grande campanha de nacionalização.
Nesse contexto, as deportações da atualidade tornaram-se parte substantiva de um regime de controle das migrações que articula (e não separa) “securitização” e humanitarismo. Mas o humanitarismo não só é insuficiente, como tende a tratar migrantes e refugiados como “vítimas” passivas, e não como pessoas. As diferentes formas de expulsão (rejeições nas fronteiras, devoluções, retornos assistidos e voluntários) tornaram-se parte de estratégias para combater os novos indesejáveis. Não por acaso, são exatamente aqueles imigrantes considerados, pelo dogma tecnocrata, como ameaças potenciais que sequer oferecem vantagens para a ordem estabelecida e que são, portanto, descartáveis.
Levando em conta a atual guinada conservadora em várias partes do mundo, essas políticas estão acirrando o racismo e a xenofobia contra imigrantes e refugiados. Mas, ao mesmo tempo, essas políticas resultaram na formação de movimentos sociais contra esse status quo, formados por diferentes segmentos da sociedade civil (mulheres, negros, igrejas, sindicalistas, imigrantes e refugiados) que lutam por uma “cidadania universal”, “nem um direito a menos para os imigrantes” e por um “mundo sem fronteiras” e, portanto, sem muros. O Fórum Social Mundial das Migrações, surgido em 2004, é um exemplo global dessas mobilizações. Outros exemplos recentes são as mobilizações sociais contra as políticas de Trump — seja a marcha das mulheres no dia seguinte à sua posse, seja a reação imediata contra a proibição de entrada nos Estados Unidos de refugiados e de visitantes de sete países muçulmanos (Irã, Iraque, Líbia, Somália, Sudão, Iêmen e Síria).
Vivemos tempos sombrios, tempos marcados por uma forte divisão, no dizer do filósofo Achille Mbembe, entre democracia e o capital. A eleição de Trump indica o capital no poder, sem mediação da classe política. Ecos de sua política retrógrada já estão ressoando na Argentina, cuja política imigratória, baseada nos direitos humanos, era considerada modelo. O atual presidente, Maurício Macri, outro multimilionário, acaba de assinar decreto restringindo a entrada de imigrantes “com antecedentes penais ou oriundos de países com forte presença de narcotráfico, especialmente Peru, Paraguai, Bolivia e México”. Na apresentação dessa nova lei, Macri utilizou expressões parecidas às de Trump, “nossa prioridade é cuidar dos argentinos”, “não podemos permitir que o crime siga escolhendo a Argentina como um lugar para vir e delinquir” e “precisamos saber quem é quem entre os que cruzam nossa fronteira. O decreto 70/2017, publicado em 30 de janeiro, ainda precisa ser discutido e aprovado pelo Parlamento e, portanto, pode ser rechaçado.
Como essas políticas discriminatórias afetam as populações locais?
Temos que levar em conta que essas políticas de controle e disciplinamento não se restringem aos migrantes transnacionais. São dirigidas também às populações urbanas das favelas e periferias das grandes cidades, assim como indígenas e outras populações tradicionais. O etnógrafo Gabriel Feltran, por exemplo, chama a atenção para que, até a década de 1970, os moradores das periferias e favelas eram classificados como “trabalhadores”, ao passo que hoje são considerados “criminosos” e “marginais” pelas políticas globais urbanas recorrentemente exportadas. As políticas de controle e até assassinatos no Rio de Janeiro e em São Paulo seguem esses padrões globais. O paradigma da securitização, infelizmente, é mais abrangente, nesses tempos de primazia do capital, como mostram os casos das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Essas políticas de controle, baseadas em violência, não estão dando certo. Violência militarizada gera mais violência. Os recentes episódios sangrentos que ocorreram em vários presídios do Norte e Nordeste e as propostas do atual ministro da Justiça de maior securitização e militarização confirmam essa tese. A solução não é construir mais presídios.
Vivemos conjunturas difíceis, mas sempre há mobilizações e, no processo, algumas vitórias contra o status quo. No passado, o fascismo e o nazismo foram derrotados. Dessa era sinistra, surgiu o humanismo pós-segunda Guerra Mundial, simbolizado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos com especial atenção aos refugiados. Paradoxalmente, esses direitos estão sendo transgredidos na própria Europa, especialmente no que tange aos refugiados. As vitórias apertadas do Brexit, na Inglaterra, e de Trump, nos Estados Unidos, são manifestações de nacionalismos exacerbados por parte de determinados segmentos da população que se voltam contra imigrantes e refugiados, em situações de crise econômica. Mais cedo ou mais tarde, as mobilizações contra essa situação acabarão por derrubar muros. Esse é o processo da história.
Qual tem sido a reação dos movimentos sociais?
Como observa o historiador Sandro Mezzadra, precisamos considerar as migrações como um movimento social que faz parte das estruturas sociais, culturais e econômicas e, portanto, como força criativa dentro dessas estruturas. Há, portanto, uma relação dialética entre essas políticas de controle e disciplinamento e as mobilizações sociais de migrantes, refugiados e outros deslocados.
O grande problema dos movimentos sociais da atualidade é sua fragmentação. São movimentos que se globalizam, mas que focalizam questões específicas: ecológicos, indígenas, migratórios, refúgio e, assim, por diante. Especialmente no nível local que esses movimentos dialogam e se unem. Portanto, as transformações têm mais chance de se dar aí, a partir das cidades. Esses diálogos entre movimentos sociais podem ser observados tanto em São Paulo como em Nova Iorque e Lisboa. Enquanto a cidade de São Paulo inovou ao criar uma coordenação de políticas imigrantes, Nova Iorque, Boston, São Francisco, Washington e Los Angeles optaram por se tornar cidades-santuário, isto é, cidades que adotam políticas de proteção aos imigrantes indocumentados, seja oficialmente seja na prática. Suas políticas não diferenciam entre imigrantes “legais” ou “ilegais” para o acesso aos programas e benefícios sociais.
Diante desse quadro, é inegável a importância de se lutar por políticas locais mais humanas e mais justas, que reconheçam a contribuição das migrações (forçadas ou não) para as cidades, não somente no quesito trabalho, mas também do ponto de vista cultural, gastronômica e das artes. As cidades se tornam mais interessantes e cosmopolitas com a inserção de imigrantes e refugiados na vida cotidiana.
Entrevista atualizada a partir de original publicada na edição de dezembro de 2016 pelo Le Monde Diplomatique Brasil