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Em São Paulo, o refúgio na gastronomia
por Débora Melo e Tory Oliveira — publicado 09/03/2017 02h00, última modificação 09/03/2017 19h20
Palestinos, sírios e congoleses abrem bares e restaurantes com comidas típicas de seus países de origem
Estadão Conteúdo
Filho de refugiados palestinos, Hasan Zarif (à direita) comanda o Al Janiah, na Bela Vista
Servido em um copo alto, o drinque gelado mistura suavemente vodca, limão e chá, evocando, diz o cardápio, o que se consome nas casas palestinas quando os convidados sentam para compartilhar histórias.
Batizado de “Retorno a Haifa”, a bebida é uma criação do barman palestino Ahmad Hajjer e uma das muitas alusões à causa palestina que circulam no Al Janiah, misto de bar, restaurante e espaço político-cultural na região central de São Paulo.
O estabelecimento começou com uma extensão das atividades de militância de Hasan Zarif, de 42 anos, e cristalizou-se em mais um ponto de contato entre as comunidades brasileira e de refugiados na capital.
Um total de 10.418 refugiados de 80 nacionalidades vivem hoje no Brasil, segundo dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). Apesar da fama de destino acolhedor, o Brasil reduziu a concessão de refúgio em 2016: foram 886 pedidos aceitos, queda de 28% em relação a 2015.
Foi na Ocupação Leila Khaled, que reúne militantes sem-teto brasileiros e refugiados, também no centro da cidade, que Zarif conheceu os responsáveis pela cozinha do Al Janiah, de onde saem pratos de falafel, kafta, babaganoush, fatouche e tabule. Zarif explica que, além da questão da moradia, o emprego é um dos principais problemas dos refugiados que chegam ao Brasil.
“Eu tenho uma obrigação com esses caras, eles são como meus pais, meus irmãos, meus parentes”, conta Zarif, cuja história se confunde com a de tantos outros desterrados em decorrência da instalação do Estado de Israel, em 1948. Nascido no Brasil, Zarif conta que a família nunca perdeu a esperança de voltar para a terra natal. “Minha mãe viveu aqui 30 anos, sem aprender português."
Os cozinheiros do Al Janiah também oferecem seus pratos toda terça-feira na Fatiado Discos, misto de bar e loja no bairro do Sumaré, zona oeste da capital. “Foi a primeira coisa boa que me aconteceu no Brasil, meu primeiro trabalho”, conta Mohammad Othman, de 28 anos, dois deles no País.
O bar cede a esse grupo de refugiados palestinos nascidos na Síria o espaço onde semanalmente é promovido o Jantar dos Refugiados, com a venda de deliciosos sanduíches de falafel e shawarma.
Congolinária
Há quase sete anos vivendo no Brasil, o refugiado congolês Pitchou Luambo, de 35 anos, comanda hoje o Congolinária, que oferece pratos veganos, típicos da República Democrática do Congo.
Segundo Pitchou, a culinária cotidiana dessa região central da África privilegia o uso de vegetais. “O congolês não come nada de origem animal no dia a dia. Então eu não precisei fazer nenhuma adaptação para oferecer comida vegana”, conta Pitchou.
A única mudança, explica, foi feita no tempero. O fufu, por exemplo, um tipo de polenta africana feita com farinha de mandioca e fubá, ganhou alho e sal. “Foi a solução que encontramos para agradar ao paladar brasileiro.”
O público brasileiro é o principal alvo do Congolinária. “O congolês faz essa comida na casa dele. A ideia é compartilhar a nossa cultura com vocês. O omomba, por exemplo, é um doce que minha avó fazia para o meu pai”, diz Pitchou sobre a biomassa de banana da terra com pasta de amendoim.
No menu vegano, os pratos ganharam nomes de animais: tembo (elefante), mbuzi (cabra), simba (leão) e ngombe (vaca). Para acompanhar as iguarias, suco tangawisi, uma bebida típica africana de abacaxi e gengibre bem marcado, com “lendárias propriedades afrodisíacas”, como alerta o cardápio. Há, ainda, a versão alcoólica, que leva cachaça artesanal.
Advogado e ativista, Pitchou trabalhava em uma organização que dava apoio a vítimas de estupro em seu país, mas teve que fugir quando passou a ser perseguido.
Com áreas ricas em minérios, a República Democrática do Congo está há mais de 20 anos mergulhada em um conflito armado, e a atuação de rebeldes da etnia hutu, que consumou o genocídio de 1994 na vizinha Ruanda, é uma das responsáveis pela manutenção da violência no país.
Da família de Pitchou, apenas a filha de 14 anos está no Brasil. Sem conseguir revalidar seu diploma de advogado, o hoje empresário critica as dificuldades impostas pela burocracia brasileira. “Falta vontade política para promover a integração dos refugiados. O governo e as ONGs parecem querer que a gente continue dependente”, diz.
Talal
A burocracia também é apontada pelo sírio Talal Al-Tinawi, 42 anos, como um dos desafios de se viver no Brasil. Em 2016, ele abriu um restaurante de comidas típicas de seu país no bairro do Brooklin, na zona sul da capital, após levantar 60 mil reais em uma campanha de financiamento coletivo.
Antes da eclosão da guerra na Síria, em março de 2011, ele vivia confortavelmente com a esposa, Ghazal, e os dois filhos na capital Damasco. Formado em Engenharia Mecânica, possuía um escritório no ramo, três lojas de roupas e dois apartamentos. A culinária, conta, era apenas um hobby.
Durante a guerra civil, porém, foi preso pelas forças de segurança do governo de Bashar al-Assad, confundido com um opositor de mesmo nome. Ficou três meses e meio na prisão, onde foi aconselhado a deixar a Síria para não ser detido novamente. A família partiu para Beirute, no país vizinho Líbano, onde ficou dez meses.
Nesse meio-tempo, Talal conta que visitou diversas embaixadas em busca de refúgio, sem sucesso. Em setembro de 2013, o governo brasileiro passou a emitir um visto humanitário facilitando a entrada no País de pessoas afetadas pelo conflito na Síria.
Sem conseguir revalidar seu diploma, Talal trabalhou vendendo roupas e conseguiu um emprego em uma oficina no bairro de Santa Cecília, mas a situação continuava difícil. Certo dia, resolveu organizar um jantar em comemoração ao aniversário de um dos filhos e convidou voluntários do Instituto de Reintegração do Refugiado (Adus). “Uma voluntária falou que a comida era muito boa e que eu deveria trabalhar como cozinheiro”, lembra.
Estimulado pelos amigos, Talal criou uma página no Facebook, passou a fazer entregas e cozinhar para eventos. O sonho de organizar um restaurante, porém, por causa dos custos, parecia distante até que surgiu a ideia de organizar um financiamento, e assim surgiu o Talal Culinária Síria.
Como forma de se adaptar ao público brasileiro, passou a trabalhar também com a opção de buffet por quilo. No cardápio, além dos tradicionais quibes fritos e esfihas, figuram o arroz sírio, acompanhado de quibe com coalhada e carne assada ou em chuletas, ou da opção vegetariana de assado de berinjela com molho de tomate, cebola e pimentão. Para acompanhar, há a limonada síria, feita com suco de limão e água de rosas.
Serviço
Al Janiah - Rua Rui Barbosa, 269, Bela Vista
Jantar dos Refugiados, na Fatiado Discos - Rua Professor Alfonso Bovero, 382, Sumaré (toda terça-feira)
Congolinária - Até 11 de março, no Vitaminado - Rua Marinho Falcão, 55, metrô Vila Madalena (depois, estarão disponíveis para eventos)
Talal Culinária Síria - Rua das Margaridas, 59, Jardim das Acácias
*Reportagem publicada originalmente na edição 926 de CartaCapital, com o título "O refúgio na gastronomia"
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