Panorama Geral da Lei de Migrações Brasileira (1980-2014)
O
entendimento sobre como deve ser uma política migratória adequada é
tema controverso em tempos de maior mobilidade através das fronteiras,
seja dentro da academia, nos movimentos sociais, na opinião pública,
imprensa ou nas esferas governamentais. De maneira geral, o debate
circunda a tensão que se estabelece entre duas visões: de um lado, a
migração como questão pertinente à segurança nacional e, de outro, como
um direito humano (DH).
SEGURANÇA NACIONAL X DIREITOS HUMANOS
No
Brasil, a matéria é regulamentada pelo chamado Estatuto do Estrangeiro
(lei 6.815/81), sancionado pelo então presidente Figueiredo, o último
general da ditadura civil-militar. Predomina, neste Estatuto, a visão
securitária: a migração é submetida ao “interesse nacional”
Predomina
nesse Estatuto a visão securitária, ou seja, ligada à segurança. Na
época da ditadura, o “interesse nacional” era proteger o país de
qualquer ameaça, fosse ela interna ou externa, sendo um dos fins evitar
que ideias comunistas se espalhassem no país. Desse modo, os imigrantes
eram vistos como pessoas que deveriam ser vigiadas ou barradas. De modo a
melhor controlá-lo, ao estrangeiro é vedado o direito à reunião e à
participação política; a posse de meios de comunicação ou de
determinação de seus conteúdos. O estrangeiro também é visto como uma
ameaça ao mercado de trabalho nacional e, em vista disso, sua vinda é
condicionada às necessidades produtivas do país.
Com
a promulgação da Constituição Federal de 1988 e o amplo arcabouço de
direitos garantidos, muito do antigo Estatuto hoje contradiz princípios
constitucionais. Diante disso, a falta de um marco renovado e compatível
com o novo momento constitucional, que forneça diretrizes claras para a
padronização da conduta das instituições do país, gera diversos
problemas. Um deles é a sobreposição de normas conflitantes. Grande
parte das lacunas ou dos conflitos entre o antigo Estatuto e a mais
recente Constituição são resolvidas por intermédio de resoluções do
Conselho Nacional de Imigração (CNIg), órgão do executivo federal ligado
ao Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE), dando ampla margem de
discricionariedade ao Excutivo. Apesar do CNig ser regido pela Política
Nacional de Proteção ao(a) Trabalhador(a) Migrante, a posição do
governo é dividida, de modo que não é possível falar em uma política
única e coerente sobre migrações em âmbito doméstico.
A
falta de uma política unificada pautada pelos direitos humanos também
favorece a perpetuação, na burocracia estatal, de condutas que revelam a
visão predominante do imigrante como sujeito de status diferente e
inferior frente ao nacional. Isso é recorrente no acesso à saúde e à
educação básica: segundo a Constituição de 1988, o imigrante tem
garantido estes direitos, independentemente da sua situação documental
ser irregular ou não. Não obstante, não são raros os relatos daqueles
que tiveram o acesso negado a estes direitos pelos agentes do Estado.
Exemplo
de como, no cenário atual, a imigração é intrinsecamente relacionada à
“segurança nacional” pode ser vista na atuação da Polícia Federal (PF).
Ela é a responsável pela tramitação de documentos e expedição do
Registro Nacional dos Estrangeiros (RNE), cédula de identidade do
imigrante, além da carteira de trabalho. O resultado é o contato
frequente entre o imigrante e a polícia, cuja qualificação dos agentes é
majoritariamente voltada para o asseguramento da ordem e da segurança.
Assim, tornam-se frequentes as reclamações de que a abordagem da
burocracia da PF é inadequada, pois seu treinamento não é, como dito
anteriormente, para tratar de imigrantes. Essa situação de inadequação
se agrava ainda mais em um cenário de terceirização do serviço em função
de escassez de mão de obra, frente ao aumento da mobilidade humana. A
falta de uma organização civil que lide com a questão associa, ainda
mais, o controle da imigração com a garantia de segurança, como se o
imigrante fosse, de antemão, um criminoso, dificultando seu entendimento
como direito humano.
Ver
esse tema através da lente dos DHs significa, em primeiro lugar,
reconhecer a aplicabilidade da Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948, conforme seu artigo 13:
§1 Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado.§2 Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar.
Aqui
se estabelece o dilema entre garantia aos direitos humanos e soberania
estatal: historicamente, é o Estado o garantidor da cidadania aos seus
nacionais e dos direitos a ela vinculados; mas é esse mesmo Estado, ao
comprometer-se com os DHs, que deve dar ao imigrante status legal igual
ao do nacional, já que os direitos humanos superam a ideia de
fronteiras. A controvérsia atinge o Estado nos seus aspectos mais
definidores historicamente: a primazia do cidadão nacional em relação ao
considerado estrangeiro. Desta perspectiva, a ideia de garantia dos DH é
extremamente subversiva à ideia antiga e mais consolidada de
Estado-nação. Superar esse dilema depende, assim, de um novo
entendimento acerca do migrante, da soberania e da função do próprio
Estado
ACORDOS INTERNACIONAIS
No
que diz respeito a acordos internacionais que avançam nessa temática, é
importante ressaltar, nesse breve panorama, que o Mercosul deu
significativo passo em direção a mudança de paradigma da imigração, com o
“Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercado
Comum do Sul – Mercosul, Bolívia e Chile”, no qual garante aos nacionais
de um Estado Parte residência em outro Estado Parte mediante
apresentação de um documento de identificação, declaração e certificado
de antecedentes criminais e pagamentos de taxas. Assinado em 2002 e
ratificado em 2009 no Brasil, o Acordo representa um importante
dispositivo que além de beneficiar diversos imigrantes, caminha rumo a
formação de uma “cidadania sul-americana”.
Em
contrapartida, o Brasil é o único país no âmbito do Mercosul que não
aderiu à “Convenção das Nações Unidas para a Proteção dos Direitos de
Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de Suas Famílias”, a qual
assegura ao trabalhador imigrante e sua família tratamento e garantias
fundamentais à pessoa humana. Embora a CNIg tenha emitido uma resolução
recomendando ao Ministério de Relações Exteriores a adesão do país, ela
tramita no Congresso desde 2010, demonstrando, assim, falta de vontade
política, já que a adesão representaria um considerável progresso do
reconhecimento da migração como um direito humano.
TENTATIVAS DE MUDANÇA NA LEGISLAÇÃO DOMÉSTICA
Quanto
à normativa interna, diversas tentativas de mudança foram empreendidas.
Uma delas, o Projeto de Lei 5655/2009, em tramitação no Congresso
Nacional, é uma proposta de substituição ao Estatuto do Estrangeiro que
supostamente pauta a aplicação da lei de acordo com os princípios de DH.
No entanto, ele ainda preserva ideias como a defesa do interesse
nacional e a primazia na concessão de visto pra pessoas que se enquadram
como mão de obra especializada, de teor notoriamente conservador, tal
qual o quadro jurídico vigente.
Há
ainda outras graves restrições que permanecem nesse PL 5655/09, como a
proibição de dirigirem veículos jornalísticos. Vale ressaltar também que
poucas reivindicações dos movimentos sociais de migrantes foram
atendidas, como a transferência de competência dos trâmites burocráticos
migratórios para um órgão civil. O PL 5655/09 enuncia um rol de
direitos de forma geral e abstrata enquanto contêm um conjunto de
deveres extensos e específicos que restringem a amplitude daquele
direito.
Outro
projeto de lei foi aquele elaborado pelo senador Aloysio Nunes (PLS
288/13). Um dos principais objetivos ancorados no projeto de lei seria a
adequação a princípios democráticos contidos na Constituição Federal e
a compromissos de DHs firmados pelo Brasil, preocupando-se com a
assistência humanitária, integração regional e a cooperação
internacional.
Todavia,
ainda que em vários aspectos avance em relação ao PL 5655/09, o PLS
288/13 estabelece os direitos de forma vaga, sem agir nas condicionantes
estruturais capazes de promover uma mudança efetiva. Não trata por
exemplo, da criação de um órgão civil responsável pelo atendimento aos
imigrantes, ou de um visto para estrangeiros sem o vínculo empregatício;
antes, configuram tentativas de harmonização da legislação migratória
com os princípios constitucionais firmados com a redemocratização e os
tratados internacionais de DH, sem propostas de modificações concretas.
Diante
de propostas de mudança na legislação distantes do considerado ideal
por especialistas e pela comunidade migrante, em 2013, o Ministério da
Justiça, por meio da Portaria n° 2.162/2013, criou uma Comissão de
Especialistas com a finalidade de apresentar uma proposta de
“Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes
no Brasil. A Comissão promoveu além de reuniões com representantes do
governo, acadêmicos e especialistas, duas audiências públicas com ampla
presença de movimentos sociais e da sociedade civil ” durante o processo
de elaboração.
O
Anteprojeto tem como principais características a compatibilidade com a
Constituição e Tratados Internacionais de Direitos Humanos em vigor no
Brasil; a mudança do paradigma da visão sobre imigração, passando do
viés securitário para o dos direitos humanos; a unificação de numerosas
normas dispersas; a participação da sociedade civil; e o objetivo de
preparar o país para novos ciclos migratórios internacionais.
A
criação da Autoridade Nacional Migratória (ANM) é um dos principais
dispositivos criado pelo Anteprojeto e um dos pontos nos quais mais
difere de forma mais incisiva das propostas anteriores. O órgão
permitiria a regulação da política migratória de forma mais concentrada,
tornando-a mais efetiva e coerente no país. Outro aspecto importante é
que a centralização do atendimento ao imigrante diminuiria a
burocratização, já que hoje o serviço é fragmentado em pelo menos três
ministérios: Relações Exteriores, Trabalho e Emprego e Justiça.
O
direito do ser humano em de buscar melhores condições de vida perpassa a
busca por trabalho. A concessão de visto temporário de trabalho para
estrangeiros que não possuem vínculo empregatício, pelo prazo máximo de
dois anos, é mais um importante avanço para a defesa dos direitos do
imigrante contido no Anteprojeto de Lei. Esse dispositivo regularizaria
muitos imigrantes que atualmente buscam emprego no Brasil.
A
consolidação de direitos iguais ao imigrante independentemente da renda
constitui um passo primordial para uma lei em concordância com os DH.
Na normativa atual, observamos atos questionáveis como a resolução n°84,
aprovada pelo CNIg, que concede visto permanente ao imigrante com
pretensão de investir um montante superior a R$150.000,00 em atividades
produtivas no Brasil. O Anteprojeto de Lei assegura a igualdade de
direitos, sobretudo com a isenção de taxas e serviços a imigrantes que
comprovem hipossuficiência econômica. Essa garantia provavelmente gerará
uma intensa oposição por parte da Polícia Federal, que hoje arrecada
uma grande soma de dinheiro das taxas altíssimas cobradas por
documentos.
Atores
interessados em retroceder no amplo rol de direitos garantidos pelo
mais atual anteprojeto são dos mais variados, incluindo setores internos
do governo menos interessados na garantia de direitos do que na fatia
do poder que lhes cabe ao lidar com uma população tão marginalizada no
debate público – e, por conseguinte, tão mais sujeita a arbitrariedades.
Faz-se mais do que necessária a aprovação de uma lei que garanta esses
avanços, que apague essa lamentável herança da ditadura civil-militar e
que sane uma dívida histórica com os imigrantes no Brasil.
por Educar para o Mundo (Camila Gumiero, Hugo Salustiano e Natália Lima de Araújo)