Refugiados do Clima
Quem são e o que fazer por eles?
Carolina de Abreu Batista Claro
22/10/14
O documentário
Sun come up retrata a difícil tentativa de
uma comunidade, de cerca de 100 pessoas das Ilhas Carteret, na Papua
Nova Guiné, de se mudar para ilhas próximas, na tentativa de sobreviver
aos efeitos perversos que a mudança e variabilidade climáticas têm
causado na sua vila. As negociações com outras comunidades são difíceis e
muitas vezes infrutíferas, pois ocorrem num país que, além de ter que
lidar com o avanço dos oceanos, também passou recentemente por uma
violenta guerra civil.
O documentário de 2011 narra drama real de comunidades inteiras que
vivem sob o medo de algo que, até então, era seu aliado: a natureza.
Aumento no nível de água dos oceanos, tsunâmis, ciclones e mudanças no
regime de chuvas são apenas alguns dos eventos climáticos percebidos por
pessoas que dependem do meio ambiente para sobreviver e para exercitar
sua cultura e costumes.
Os habitantes das Ilhas Carteret, juntamente com os moradores das Ilhas
Taro,
nas Ilhas Salomão, são “o rosto da mudança do clima” e os primeiros
grupos de pessoas que se veem forçadas a migrar do seu local de origem
exclusivamente pela busca por sobrevivência diante dos efeitos causados
pelas mudança climáticas. Em regiões tão pequenas e com poucos outros
recursos naturais, a adaptação a essas mudanças nem sempre é possível.
Os habitantes de pequenas ilhas como Carteret, Taro, Maldivas, Tuvalu e
Kiribati convivem com a alta salinidade do solo, falta de água potável
e, consequentemente, com a dificuldade de produzir alimentos.
Fora de casa - Ao migrarem para outro local, os
refugiados do clima sofrem também a resistência das comunidades de
destino e, com o tempo, podem perder total ou parcialmente suas
características culturais, como por exemplo dialetos herdados dos seus
antepassados. Caso a migração ocorra para fora do país de origem, o
problema torna-se ainda maior, uma vez que os Estados nacionais têm
restringido cada dia mais a admissão de estrangeiros em seus
territórios, e os obstáculos para a efetiva integração dos imigrantes
são sempre grandes desafios.
Mas não é apenas o avanço dos mares e oceanos que pode causar a
migração forçada por motivos ambientais: refugiado do clima é toda e
qualquer pessoa que se vê obrigada a migrar do seu local de origem por
quaisquer motivos relacionados à mudança e variabilidade climáticas,
sejam esses de início rápido (como ciclones, tornados, chuvas intensas
que causam enchentes, tsunâmis, entre outros) ou de início lento
(aumento gradativo da temperatura do planeta, desertificação, degelo de
calotas polares, etc.). Somam-se aos efeitos climáticos também a
interferência do homem no meio ambiente, que tende a aumentar o risco de
que populações inteiras tenham que migrar para sobreviver, como nos
casos de erosão do solo, derrubada de vegetação nativa, poluição e
qualquer outra situação que cause desequilíbrio ecológico temporário ou
permanente.
Prisioneiros das águas - Estimativas apontam que até
2050 o mundo terá entre 250 milhões e 1 bilhão de refugiados do clima,
mas já há quem afirme que na primeira década do século XXI esse número
mínimo já tinha sido ultrapassado em razão do aumento exponencial de
desastres ambientais no mundo todo. Nesse cenário, Bangladesh, país
localizado no Oceano Índico, com baixa altitude e que possui o maior
delta do mundo em termos de vazão de água, pode, sozinho, produzir um
número de refugiados do clima maior do que o mundo todo somado. Isso se
deve principalmente ao fato de Bangladesh possuir alta densidade
demográfica e alta taxa de natalidade num território que recebe água do
oceano, dos rios que desembocam no seu delta (formado pela confluência
de três grandes bacias hidrográficas) e do degelo dos Himalaias.
Assim como os habitantes de Carteret, os moradores de Bangladesh não
têm muita opção no que diz respeito à permanência no seu território num
futuro próximo. O que fazer então para que os refugiados do clima desses
locais e do restante do mundo sejam ouvidos nos foros políticos
internacionais e tenham seus direitos humanos preservados? Uma
alternativa viável seria o estabelecimento de uma governança
[1]
migratória ambiental global que pudesse congregar normas jurídicas,
instituições e atores já existentes nos planos interno dos Estados e que
buscasse soluções pontuais para um problema urgente. Outro caminho
seria a criação de uma agência internacional para cuidar especificamente
dos interesses e das vulnerabilidades dos refugiados do clima.
A título de exemplo, órgãos operativos da Organização das Nações
Unidas (ONU) como o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), a
Organização para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, na sigla
em inglês) e outros têm aumentado consideravelmente sua atuação em prol
dos refugiados do clima de acordo com o aumento da demanda em torno
desse urgente tema global, apesar de nenhum deles ter mandato específico
para cuidar do assunto.
Pessoas invisíveis, problemas reais - No plano
jurídico, os refugiados do clima sequer existem. Segundo o direito
internacional dos refugiados, consagrado na Convenção da ONU sobre o
Estatuto dos Refugiados, de 1951, refugiados são pessoas que possuem
fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião,
nacionalidade, pertencimento a grupo social e opiniões políticas, que
não podem ou não querem voltar ao seu país de origem em razão desse
temor. São os refugiados “convencionais”, posto que refugiados, nos
termos da Convenção de 1951, são migrantes forçados (porque não
escolheram migrar) e migrantes internacionais que cruzam fronteiras
políticas entre Estados para poderem ser elegíveis à proteção conferida
pelo direito dos refugiados e para serem protegidos pelo ACNUR.
A nomenclatura tem sido motivo de muito debate entre acadêmicos e
políticos (principalmente de órgãos da ONU) sobre o uso das expressões
“refugiados ambientais”, “refugiados do clima”, “refugiados da
conservação”, “refugiados dos grandes projetos de desenvolvimento”,
“deslocados ambientais”, “migrantes ambientalmente forçados”, entre
outros, para dizer que refugiados somente podem ser chamados dessa forma
quando a Convenção da ONU sobre Refugiados admite como tal – os
chamados refugiados “convencionais”.
O problema é que, uma vez que uma nova categoria de refugiados surge,
essas pessoas não possuem amparo da Convenção dos Refugiados e tampouco
do ACNUR, órgão que presta assistência e proteção aos refugiados
“convencionais”. O mesmo ocorre com os demais órgãos da ONU, agências
especializadas e organismos internacionais fora do sistema das Nações
Unidas.
Não se pode esquecer, entretanto, que, etimologicamente, “refugiadas”
são pessoas que buscam abrigo e proteção fora da sua morada habitual e
que, acima de tudo, é preciso superar o debate de que “refugiados do
clima não são refugiados” e flexibilizar as normas jurídicas existentes
para que possam ser aplicadas a esse grupo de pessoas, de forma a
garantir o pleno exercício dos seus direitos humanos, especialmente com
relação ao acesso à saúde, moradia, segurança, emprego, educação, etc.
Soluções urgentes para temas urgentes - Com a
compreensão de que outras categorias de refugiados não contempladas pela
Convenção da ONU existem, organizações não governamentais e associações
da sociedade civil, locais e internacionais assumem um papel
fundamental na proteção dos refugiados do clima e na prestação de ajuda
humanitária diante de desastres ambientais, especialmente daqueles de
início abrupto, como ciclones, tornados e enchentes, os quais tendem a
causar grande impacto na população, na organização política, no sistema
econômico e no próprio meio ambiente. Sem a atuação dessas instituições,
tanto o tema das migrações quanto o tema ambiental dificilmente teriam
tido a atenção e o alcance que hoje possuem no mundo.
As mudanças climáticas representam um desafio e também uma
oportunidade para a comunidade internacional agir no nível político: a
mudança e variabilidade climáticas que têm causado distúrbios visíveis
no ecossistema global requerem que ações práticas e efetivas sejam
tomadas de imediato:
- é preciso buscar soluções urgentes para temas urgentes, pois a
grande maioria dos potenciais 1 bilhão de refugiados do clima não podem
esperar intermináveis debates políticos, enquanto suas casas e vilas são
diretamente afetadas pela mudança do clima;
- é preciso pôr em funcionamento uma governança migratória-ambiental
global com mecanismos e instituições existentes que tenham boa vontade
para ampliar seus mandatos e tarefas;
- é preciso que os mecanismos de adaptação, frente às mudanças do
clima, sejam efetivados e amparados por organizações da sociedade civil e
pelos governos locais;
- é preciso agir antes que as vítimas das mudanças climáticas, que
muitas vezes não contribuíram para o destino que enfrentam, sejam
amparadas na totalidade; antes que elas sejam os exemplos recorrentes de
como toda a humanidade pode sucumbir diante das suas próprias práticas
insustentáveis e que desconsideram os ciclos milenares da natureza.
O nascer do sol, que dá título ao documentário sobre os habitantes de
Carteret, representa uma esperança de que os refugiados do clima terão
suas vozes ouvidas e suas demandas respondidas pela comunidade
internacional. Mas é preciso agir antes que seja tarde demais e que o
sol não deixe de nascer diariamente para essas pessoas.
[1]
Governança é definida pela Comissão da ONU sobre Governança Global como
“a soma das várias maneiras pelas quais os indivíduos e as
instituições, públicas ou privadas, geram seus assuntos comuns. Trata-se
de um processo contínuo por meio do qual se concilia e se age sobre
interesses distintos ou conflituosos” (1995, p. 02).