domingo, 14 de junho de 2015

Filmes, livros e vídeos

A TRAVESSIA SEM FIM


Três dias em companhia dos migrantes haitianos rumo a São Paulo. Esperança, dificuldades, desilusão e… esperança.
Passadas 79 horas e quase 4 mil quilômetros de uma viagem desgastante e cheia de imprevistos desde Rio Branco, capital do Acre, um grupo de 18 imigrantes finalmente tinha São Paulo, a tão desejada e idealizada São Paulo, a seus pés, ao seu redor, ao seu olhar.
Depois de penarem por semanas, pulando de um ônibus a outro, cruzando diversas fronteiras, sofrendo roubos e extorsões, passando por humilhações e sacrifícios no precário abrigo acriano, eles haviam vencido. Enfim estavam na terra prometida, onde, segundo lhes asseguraram, teriam um bom emprego, vida nova e prosperidade.
O relógio marcava 1h30min da madrugada da última terça-feira quando o ônibus da empresa TransBrasil encostou no Terminal Rodoviário do Tietê. Os 18 refugiados haitianos dormiam no interior do veículo, às escuras, e aos poucos foram despertando, recolhendo seus pertences e desembarcando.
Ainda incrédulos e cansados, perguntavam:
– Aqui é São Paulo? Já chegamos? Após pegarem as malas no bagageiro, foram se aglomerando em frente ao box 71 da rodoviária, mesmo local em que foram deixados. Não havia reação, alegria, sorrisos ou choro. Nenhuma atitude ou emoção. Alguns cruzaram os braços, baixaram a cabeça, sentaram sobre as malas. Nenhum passo era dado sequer para pedir informações.
Desnorteados, ficaram ali mesmo, na parte externa, sob um frio de 16ºC que os castigava. Por medo de sair do local e se perder dos companheiros que falavam o seu idioma, um dos haitianos pegou um recipiente da mochila e urinou ali mesmo. Largou o pote em um cantinho e voltou ao seu lugar, em frente ao box 71.
Os motoristas da odisseia, após 40 minutos, tomaram assento no carro e deixaram o terminal. E os haitianos continuavam nas mesmas posições. Mais uma vez, era a falta de informação, a terrível dificuldade de comunicação e um certo medo de agir equivocadamente trazendo consequências aos imigrantes.
Aos poucos, começaram a se movimentar em busca de telefones em que pudessem contatar familiares ou amigos. Queriam avisar da chegada, dar um jeito de serem encontrados, mas muitos dos números informados não existiam. Não deixou de ser mais um momento chocante, aflorado pela completa falta de rumo e desconhecimento sobre o lugar que escolheram para ser o esteio de suas vidas.
Bensy Jean Bastiste pedia que ligassem ao seu primo. Ele poderia buscá-lo na rodoviária, garantia o haitiano. Quando o parente foi contatado, a surpresa: ele vivia em Jaraguá do Sul, em Santa Catarina. Bensy não tinha a menor ideia das características geográficas do Brasil. Ele guardava R$ 90 no bolso e sua esperança passou a ser tomar um ônibus pela manhã a Jaraguá do Sul.
Mas o dinheiro era insuficiente, o que desenhava um quadro trágico para o seu destino. Tendo de se alimentar, Bensy passou a madrugada perdido na rodoviária, sem recursos para seguir viagem e encravado em um meio eivado por assaltantes, golpistas e moradores de rua.
Magricelo e baixo, Guijard Almazor era dos poucos que tinha um telefone próprio apto a fazer chamadas. Zanzava pelo box 71 com um papelucho amarrotado e rasgado no qual se lia: Minas Gerais. Ele não sabia dizer para qual cidade iria e pareceu espantando depois de ouvir a informação de que Minas Gerais conta com 853 municípios. E era preciso apontar um como destino.
Cinco minutos depois, Guijard surgiu com outro bilhete citando Belo Horizonte. Finalmente conseguiu contato com um parente. O familiar explicou que o imigrante deveria tomar um ônibus para o município mineiro chamado Cláudio. Guijard começou a treinar a pronuncia do seu destino: “CRAAAAU-DIO”, esforçava-se o imigrante. Esse haitiano poderia ter desembarcado em Minas Gerais, na região de Uberlândia, por onde passou o ônibus da TransBrasil. Seria mais perto e menos oneroso. A falta de informação, porém, o conduziu desnecessariamente à capital paulista.
Às 3h15min, quase duas horas após o desembarque, os 18 haitianos seguiam paralisados em frente ao box 71. Katly Milus, uma negra esbelta, alta, magra e de rosto fino, a única que ousava discutir assuntos em geral com os homens, também estava calada. Braços cruzados, fitava pontos aleatórios no horizonte. A maioria pretendia permanecer em São Paulo, mas sequer havia conseguido colocar o pé fora da rodoviária.
Terra prometida
Terra prometida é o slogan atribuído ao Brasil pelos vendedores de ilusões que atuam em países berço de imigrantes contemporâneos. Aproveitando o contexto de miséria, desemprego e desesperança de nações como Haiti e Senegal, os agenciadores de viagens estimulam as migrações.
Como as fronteiras dos Estados Unidos e da Europa ergueram restrições, o Brasil surgiu como opção. O fenômeno foi alimentado devido à aproximação entre os governos brasileiro, caribenhos e africanos, além do interesse de grandes industriais em trazer mão de obra que aceite serviço pesado. A explosão das migrações ocorreu a partir de janeiro de 2010, quando um catastrófico terremoto devastou o Haiti e multiplicou o cenário de pobreza.
Para fantasiar a realidade de um país como o Brasil, que cresceu economicamente, mas passa por crise e mantém bolsões de miséria e precariedade de serviços públicos, os agentes vendem a ideia da terra prometida, onde os imigrantes encontrarão emprego, salários em moeda valiosa, saúde, educação, segurança e, se necessário, programas sociais. A realidade difere do rótulo propagandista.
– Para as agências de viagem do Haiti e do Equador (país em que eles descem do avião e tomam ônibus rumo ao Acre, no Brasil), o que importa é o lucro. Elas não querem saber se as pessoas vão sofrer. As agenciadoras acabam enganando os imigrantes, que também se oferecem para serem enganados. O haitiano não quer ouvir que terá dificuldades no Brasil. Ele só quer ouvir que é o paraíso e que tudo irá se resolver – afirma Esdras Hector, haitiano que vive no Brasil há quatro anos e, agora, ajuda na recepção e orientação dos seus compatriotas que residem no abrigo em Rio Branco, no Acre.
O inferno dos imigrantes começa antes mesmo da chegada ao chão brasileiro, quando são roubados e extorquidos por policiais ou cidadãos comuns na travessia do Peru. Nesse período, chegam a passar fome e são forçados a longas caminhadas, algumas pela mata. Depois, vem a falta de dinheiro, a fome e a sede. Já no abrigo disponibilizado pelo governo do Acre, encontram uma morada em condições desumanas. Superlotação, colchões úmidos e semidestruídos, mau cheiro, esgoto, banheiros inutilizáveis e doenças.
Também sofrem com a incapacidade de comunicação e a falta de informação. Até aqui, a terra prometida dos imigrantes é nada mais do que tragédia.
– No Haiti, há pessoas que se passam por religiosos. E eles pregam que o Brasil é a terra prometida. Os pastores chegam a indicar as agências de viagem, dizem que o abrigo é um hotel com três refeições ao dia – revela Antonio Carlos Ferreira Crispim, um dos coordenadores do precário local que hospeda imigrantes em Rio Branco.
As informações citadas por Crispim foram apuradas pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que enviou investigadores ao Haiti e, constantemente, se faz presente no abrigo de forma anônima. Na via-crúcis para chegar ao Brasil e nas primeiras semanas no país, os imigrantes sofrem um choque. Tudo é diferente daquilo que lhes venderam.
Milhares de haitianos e senegaleses acabaram conseguindo emprego nas regiões Sudeste e Sul, superaram as dificuldades do passado e sustentam famílias nas suas nações. Para esses, o sacrifício valeu a pena. Mas há muitos, que vieram com expectativa de não se tornarem peões, que olham a experiência com frustração.
– Gente que vivia relativamente bem no Haiti deixou tudo para trás por achar que o Brasil é os Estados Unidos. Mas o Brasil não é o Estados Unidos. Na cabeça do haitiano, a única coisa que importa é fugir do seu país. Tenho um amigo que voltou ao Haiti. Ele acha que atrasou a sua vida no Brasil – conta Esdras.
O trauma causado pela trajetória até o Acre e pelo período no abrigo se traduziu na reação desesperada de um haitiano no dia 27 de maio, uma quarta-feira. Cansado de esperar por uma vaga nos ônibus oficiais do governo acriano que levavam ao Sul e ao Sudeste, ele comprou passagem em um coletivo privado que encostou na rua do abrigo. Pagou R$ 330 por uma passagem de Rio Branco a São Paulo.
Tendo o sorriso como característica, estava radiante, buscou sua mala no alojamento, passou um pano para remover a poeira e saiu correndo. Ficou cerca de duas horas esperando a partida do ônibus, quando veio a notícia de que a viagem não sairia mais. Poucos bilhetes haviam sido vendidos naquele dia. O haitiano murchou, o sorriso sumiu. Uma expressão trágica lhe tomou as feições. Pegou o dinheiro de volta com o motorista e disse que daria outro jeito de sair de Rio Branco.
– Tenho família no Brasil, estão desesperados para me ver. Estou há 10 dias aqui (abrigo) e não posso aguentar mais. Tenho dor de cabeça, gripe, não suporto mais – disse o haitiano, que ainda lamentou a sujeira e o mau cheiro do abrigo, a escassez de água e as dores que sentia pelo corpo.
À noite, não conseguia mais dormir. Sentava no esfarrapado colchão, colocava a cabeça entre as pernas e esperava o tempo passar.
Lugar inóspito
Não há território mais inóspito no abrigo, em Rio Branco, do que os banheiros. Em um corredor longo, as cabines com vasos sanitários estão de um lado. Os boxes com os chuveiros estão em frente. As paredes plásticas que fechavam a área das duchas estão destruídas e espalhadas pelo chão. Lixo e roupas velhas estão perdidos por ali, mas o pior é o cheiro que exala dos vasos sanitários, com fezes acumuladas até a borda. Também há dejetos pelo chão.
Com o local inutilizável, muitos imigrantes tomam banho nos fundos dessa área, aproveitando a água que desce de canos em frente a um matagal, sem privacidade. Para caminhar em alguns locais, é preciso pisar certeiro sobre tijolos ou passarelas. Errar significa enfiar o pé no esgoto que corre livre por diversos cantos do abrigo.
No dia em que caiu uma pancada de chuva típica do norte do Brasil, uma calha começou a jorrar água perto de um dos dormitórios. Os haitianos Maxonuy Vertu e Jean François Philogene não hesitaram: de sunga, se jogaram debaixo da vertente, lavando- se com sabão. Opção melhor do que encarar os banheiros.
O abrigo fica na Chácara Aliança, sede de eventos que teve suas dependências alugadas pelo governo acriano. O imóvel está em área de preservação ambiental, na Estrada Raimundo Irineu Serra. Nas redondezas, também há um centro para celebrar o lugar onde foi criada, justamente por Raimundo Irineu Serra, a doutrina do Daime, manifestação religiosa conhecida pela ingestão de um chá alucinógeno.
Entre os dias 22 e 24 de maio, o abrigo estava com quase 600 pessoas, cerca de 450 haitianos e 80 senegaleses, além de porções menores de dominicanos, bengaleses, ganeses e nigerianos. A superlotação é um dos principais dramas. Eles são forçados a dormir empoleirados, sobre colchões rasgados, carcomidos, sujos e úmidos. À noite, são atacados por insetos.
Pelo vaivém de refugiados, o chão fica sujo de barro. Em um dos dormitórios mais lotados, não há paredes laterais, apenas telhado e muretas, deixando os imigrantes expostos a intempéries. Há pelo menos um lugar de pé direito baixo, que, combinado com a superlotação, traz sensação de sufocamento. O cheiro ruim está por todas as partes. E as doenças também.
São inúmeros os relatos de febre, dores na cabeça e no corpo e problemas estomacais. Era o caso de Alter Esmangat, 41 anos, haitiano que, debilitado, se encolhia pelos cantos. Um médico cubano atende uma vez por semana no abrigo, receitando remédios que são buscados pelas equipes do governo na farmácia pública. Mas é pouco diante do quadro de calamidade do local. Desabituados ao cloro, os imigrantes também enfrentam dificuldades para ingerir água, que, aliás, é escassa. Em parcas torneiras, eles se amontoam com garrafas pet a mão.
Desde o início do abrigo – o atual, na Chácara Aliança, é o terceiro local diferente de funcionamento, sendo que mais de 38 mil imigrantes já passaram pelas estruturas desde 2011 _, três já morreram no local. O caso mais antigo foi consequência de câncer. Os mais recentes se deram por doenças adquiridas ou agravadas no alojamento.
A comida, distribuída três vezes ao dia, é outro problema. São vários que não se adaptam e reclamam da repetição de cardápio: carne, arroz, feijão e massa. Marmitas são abandonadas diariamente pelo chão. Um gatinho magro e jovem se aproximou de um recipiente cheio. Farejou o feijão, a carne, a massa. Refugou.
Para o haitiano Saludieu Rosalva, os imigrantes passam por “situação de calamidade”. Para descansar durante o dia, os refugiados preferem duas áreas ao ar livre, distante da morrinha dos alojamentos. Uma em frente aos dormitórios e outra diante do prédio da chácara convertido em sede da coordenação. Ambas ficam sob sombras de frondosas árvores, que protegem do escaldante sol acriano. Por ali sentam, conversam, cantam, discutem, mexem em celulares e aparelhos eletrônicos, se espreguiçam, não fazem nada.
A paisagem da chácara foi alterada. Qualquer lugar que possa sustentar roupas ao sol foi convertido em varal. No pátio, uma pequena réplica do Cristo Redentor teve os braços abertos transformados em sustentáculos para roupas, um pé de tênis All Star repousava sobre sua cabeça.
A comunidade acriana debate diariamente a questão da imigração, mas é gritante o pouco ou nenhum envolvimento dos cidadãos com a rotina do alojamento. Um dos motivos que ajudam a explicar é a distância da chácara em relação ao centro da cidade, mas há mais fatores.
– Algumas igrejas e empresas contribuem em ocasiões festivas, como o Natal, mas, em geral, a participação das pessoas na assistência social tem sido muito pequena. O Acre é um Estado pobre – destacou Carlos César Ferreira de Souza, servidor público que trabalha no abrigo.
Estudo de Letícia Mamed e Eurenice Lima, professoras da Universidade Federal do Acre, indica que 60% da população acriana – são 790 mil habitantes no Estado, 364 mil na capital Rio Branco – é dependente de algum programa de transferência de renda. Secretário estadual dos Direitos Humanos, Nilson Mourão afirma que a vizinhança da chácara está incomodada com a ininterrupta presença dos imigrantes, enquanto na área mais central de Rio Branco “há medo de disseminação de doenças”. Embora não haja violência, a convivência não tem sido pacífica, com sinais de preconceito e xenofobia despertando.
– Esses pretos só vem para incomodar – disse, furioso, um morador da antes pacata rua do abrigo no dia em que o motorista do ônibus contratado pelo governo para levar imigrantes derrubou parte de sua cerca ao dar ré no veículo.
Sem nada para fazer além de passar o tempo até embarcar em um ônibus que os retire daquele lugar, os refugiados jogam futebol e dominó. Multidões se reúnem em torno das atividades, vibrando a cada lance com uma alegria fugaz, que logo é substituída por preocupações com a família que ficou para trás, o dinheiro que acabou e a oportunidade que não aparece.
No corredor do pequeno prédio da coordenação do abrigo, em um quartinho contíguo à sala dos funcionários, uma cena tocante. Pela fresta da porta entreaberta, era possível ver a haitiana Eloise Ulysse, 39 anos, deitada à cama, com um seio para fora do vestido. Não era nudez. Ela estava amamentando o pequeno Diulio, que, naquela sexta-feira, 22 de maio, tinha apenas três dias de vida.
O marido de Eloise vive em São Paulo e comprou de um coiote as passagens para que ela fosse ao encontro dele. Como a mulher estava grávida, o pai do menino optou por uma rota mais confortável: Eloise se deslocaria apenas de avião até Cobija, na Bolívia, na fronteira com Brasileia, no Acre. As duas cidades são divididas por uma ponte, único trajeto que Eloise teria de caminhar até pegar, do lado brasileiro, um táxi que a levaria a Rio Branco.
Na última hora, o coiote disse que, pelas leis bolivianas, Eloise não poderia pegar um avião de La Paz a Cobija com oito meses de gravidez. Deu a ela como alternativa seguir pela rota tradicional de imigrantes, indo de avião até o Equador, seguindo de ônibus e a pé no longo caminho entre o Peru e o Brasil, jornada que pode se estender entre seis e 10 dias.
– Quando se compra a passagem de um coiote, não há devolução de dinheiro. Você precisa ir. Não imaginei que sofreria tanto – lamentou Eloise.
Ela chegou ao Acre em 15 de maio, e o marido havia reservado passagem aérea para São Paulo no dia 19. Mas as coisas saíram do planejamento. Na véspera da última etapa da jornada até o centro do país, começou a sofrer dores e, na data de tomar o avião, teve de ser levada do abrigo para um hospital em Rio Branco. Complicações forçaram uma cesariana. O menino nasceu precocemente.
O sonho de chegar a São Paulo estava adiado, e Eloise retornou com o pequeno Diulio, que passava bem, para o abrigo. Para dar um pouco mais de conforto e afastar o bebê da sujeira, um quarto foi reservado à haitiana. Ela não tinha nada para vestir o menino. Os funcionários do abrigo, pouco numerosos, mas dedicados, se reuniram para arrecadar roupas de recém-nascido.
Nos primeiros dias, a mãe raramente saía da cama. Faltava-lhe ânimo. Se alimentava mal por não ter se adaptado à comida. Estava fraca. Sentia dores nos pontos, mas suas maiores chagas eram a angústia, a saudade, o sofrimento e a culpa. Em tom de voz baixo, quase murmurando, contava a sua tragédia. Abatida, parecia entregue a um estado de depressão pós-parto:
– A dor nos pontos até é suportável, mas estou muito preocupada.
Agora, Eloise aguarda autorização médica para tomar condução rumo a São Paulo, onde finalmente encontrará o marido. Uma semana após o parto, teve de ser levada por funcionários do abrigo de volta ao hospital. Dores e o ventre que não desinchava. Tudo ficou bem naquele dia, mas Eloise, que deixou outros cinco filhos com a avó no Haiti e está distante 3,5 mil quilômetros do marido, ainda está vazia e desamparada.
Religião
Haitianos são mais baixos e fortes. Senegaleses são mais altos e magros. Ambos são vaidosos e gostam de se vestir bem, principalmente os haitianos, com marcas famosas e camisas de Messi, Neymar, Cristiano Ronaldo e Michael Jordan. Os dois países foram colonizados pela França e, hoje, oferecem dificuldades, miséria e desemprego aos seus povos. Essencialmente, são negros. Mas os imigrantes do Haiti e do Senegal que chegam ao Acre não se gostam, evitam o contato, preferem a distância. A religião é o pilar dessa segregação.
Os haitianos, atualmente, estão muito vinculados à confissão evangélica. Às sextas-feiras, o pastor Ivanildo Peres, da Igreja Batista de Vila Ivonete, um bairro de Rio Branco, vai ao abrigo com violão, microfone e amplificador. Na quadra de futebol, comanda um culto de duas horas e meia. Dezenas de haitianos participam e entram em transe, erguem as mãos e as colocam no peito e no rosto, fazem juras de amor a Jesus Cristo. Devido ao preconceito, evitam comentar publicamente, mas parte deles é praticante do vodu, uma tradição do seu país.
– Somos separados. Eles (senegaleses) usam grigri. Isso é coisa de Satanás. Eles creem em Maomé, e nós em Deus. Fica cada um do seu lado – afirma o haitiano Jean François Philogene.
O grigri citado pelo imigrante é uma proteção carregada pelos africanos no braço e na cintura, cordas com adornos em couro presos ao laço.
– É apenas uma questão de cultura, algo para nos proteger de todos os males – explica o senegalês Cher Fall. Mais rígidos e unidos, imigrantes do país africano fazem suas celebrações religiosas muçulmanas no abrigo, com cantos e saudações.
– Não temos problemas com os haitianos, respeitamos eles e as diferenças – diz Bathie Ndao, que ajudava o “presidente” dos imigrantes do Senegal – escolhido para liderar o grupo – a organizar os compatriotas no abrigo.
Apesar da declaração conciliadora de Bathie, a realidade é diferente. O senegalês manifesta suas rejeições em relação ao haitiano, muitas vezes em gozações ou insultos em francês, praticamente a segunda língua falada nos dois países.
– O senegalês se acha superior ao haitiano. Dizem que descendem de escravos – conta Antonio Carlos Ferreira Crispim, coordenador do abrigo.
O curioso é que muitos daqueles que foram escravos no Haiti vieram da África. Os dois povos sofreram violações. A rixa determinou providências na rotina da Chácara Aliança. Os imigrantes das duas nacionalidades ingressam em filas separadas para retirar as marmitas. O alojamento dos senegaleses, minoritários, fica afastado dos demais. São medidas para evitar atrito. As versões dos funcionários do governo acriano divergem. Alguns dizem que o máximo que houve foi empurra-empurra. Outros asseguram ter presenciado casos de pancadaria. Em contexto de intolerância religiosa e conflitos históricos, os haitianos, mais individualistas, expressam fortes divergências mesmo entre si.
– Muita gente pratica vodu. Não gosto, é coisa ruim – diz Franci Lonack.
A religiosidade desempenha papel preponderante nas vidas e relações dos imigrantes. Um dos símbolos desse forte vínculo com a fé é o pacífico e simpático haitiano Jude Lerenard. Em um ambiente inóspito, de alguns maltrapilhos, ele chama a atenção por andar sempre elegante, em trajes sociais. À mão, leva a Bíblia, diariamente lida em diversos cantos da chácara. Jude também é inseparável de uma pequena caixinha de som portátil, que cabe na palma da mão, a qual conecta um pen drive com canções gospel. Ele sorri, cantarola, embala o corpo de um lado para o outro:
– Amo Cristo muito.
Ônibus mágico
Nos períodos em que não há ônibus contratados pelo governo acriano para levar imigrantes ao Sul e ao Sudeste, por meio de convênio com o Ministério da Justiça, o abrigo se torna um inferno ainda mais doloroso. A atual estrutura já chegou a ter mil pessoas, cinco vez mais do que a capacidade máxima. No início das migrações, quando o acolhimento ainda ocorria na cidade de Brasileia, 2 mil refugiados se acotovelavam no alojamento.
Entre 19 de março e 13 de maio, nenhum ônibus partiu da Chácara Aliança. Nesse período, 2.422 imigrantes chegaram ao abrigo, e 1.753 tiveram de sair com recursos próprios, em ônibus fretados, alguns clandestinos, a maioria rumo a São Paulo.
Naqueles dias entre 21 e 29 de maio, 10 coletivos foram contratados para trazer 440 imigrantes ao sul do país. Antes disso, veículos haviam levado refugiados a São Paulo. A disponibilidade de ônibus gerou expectativa e aflição na Chácara Aliança. Entrar num coletivo da empresa Eucatur era a sorte grande: o transporte não tinha custo e três refeições ao dia eram garantidas. Era a certeza de chegar em uma cidade e conquistar o sonhado emprego, sem passar fome no trajeto.
Mas não havia lugar para todos: cerca de 600 pessoas estavam no abrigo, somadas aos 40 imigrantes que, em média, chegam diariamente. Critérios são utilizados para decidir quem viaja e quem fica. A data de ingresso no país registrada no passaporte é o principal. Depois de passar ao lado brasileiro da fronteira, o imigrante faz o protocolo para permanecer no país, que lhe dá o direito à carteira de trabalho – rodeada por uma simbologia especial para estrangeiros que vem ao país em busca de emprego – e ao CPF.
– A escolha é por antiguidade – garante o secretário de Direitos Humanos do Acre, Nilson Mourão.
Há distorções admitidas pelos servidores do abrigo. Uma delas é a compra e venda de vagas entre os próprios imigrantes por US$ 50. A ansiedade por partir em busca dos sonhos no Brasil produz cenas marcantes. Todas as manhãs, antes de ser afixada a lista com os nomes que viajariam, filas se formavam para o cumprimento de formalidades, como verificação de passaporte e registro de saída.
Agoniados, logo começavam a avançar na fila até encostar a barriga e o peito nas costas do imigrante da frente, todos grudados, como se aquilo representasse estar mais perto de sair. Não menos chocante é a escolha do destino. Mesmo quem tem parentes no Brasil encontra dificuldade para dizer aonde vai. Era o caso do haitiano Mikendy Paul, que aguardava havia 15 dias no abrigo. Ele tem um irmão no país, mas não sabia sequer dizer a cidade. Em maioria, eles têm São Paulo como única referência. Depois, ouvem algumas possibilidades e as repetem, sem muita convicção: “Santa Catalina”, desconhecendo que é preciso escolher um município nos Estados.
Acabam direcionados para aonde são ofertados os ônibus. Apesar do interesse crescente por Cuiabá (MT), se sobressaem como destino as regiões Sul e Sudeste, onde as migrações de caribenhos e africanos já estão mais consolidadas, tendo como sustentação a busca de empresários por mão de obra para a construção civil, postos de gasolina e indústria alimentícia, sobretudo frigoríficos.
– A gente diz que tem o ônibus para determinado lugar e eles fazem a inscrição – diz Mourão, confirmando que, para os refugiados, o destino é mais uma questão de oportunidade.
Agenciadores de viagem, de origem senegalesa e haitiana, também atuam livremente dentro da Chácara Aliança. Um senegalês que vive em Rio Branco há um ano alugou moradia próxima do abrigo e comprou uma moto. Tem trânsito livre e diz que está ali para ajudar seus “irmãos”, mas é investigado por suspeita de atuar como coiote. Seu nome está em cartazes espalhados pelas paredes da parte senegalesa do abrigo. Ele recolhe valores dos compatriotas e uma terceira pessoa compraria passagens pela internet para diversos lugares do Brasil. Em um contato telefônico com a reportagem de ZH, que se identificou como uma empresa com interesse em mão de obra, o senegalês disse que poderia conversar sobre a organização de um grupo de imigrantes a ser enviado ao Sul sob encomenda.
O sol estava alto, fritando o asfalto perto do meio-dia de 25 de maio, no momento em que um grupo de 14 imigrantes se amontoava à beira da estrada sob um telhado semidestruído, que também é utilizado como ponto de ônibus.
Exaustos, tinham fome e sede. Dores musculares atacavam as pernas. Dois estavam descalços. Ali estava a realidade cotidiana: refugiados que tentam cruzar a pé os 323 quilômetros entre Assis Brasil, cidade acriana na fronteira com o Peru, e Rio Branco.
O grupo estava no quilômetro 210 da BR-317, em Xapuri, terra natal do líder ambientalista Chico Mendes. Caminhavam havia 14 horas. Ficaram sob a chuva torrencial nortista e o sol agressivo. Irritados com a situação desesperadora, por três vezes quase iniciaram pancadarias entre si. As discussões ríspidas não cessavam. Era o ápice do sofrimento humano.
A comunicação com brasileiros era quase inviável. Em maioria, eram senegaleses, falam o idioma wolof. Uma haitiana estava próxima, mas guardava certa distância dos demais. Ela conseguia falar um pouco de espanhol, além do crioulo, língua oficial do seu país. Atônita, Maria France Ladouceurs não conseguia concatenar as ideias. Levava apenas uma bolsa de mão. O resto de sua bagagem havia sido roubada no Peru. Ela não sabia onde estava nem para onde ia. Passando por visceral sofrimento, afirmou que “sempre ouvia falar das belezas do Brasil”.
– Se conseguir trabalho, fico. Se não der, volto ao Haiti – disse, como se a sua epopeia pessoal se resumisse a um período de turismo.
No dia seguinte, os 14 conseguiram chegar a Rio Branco. Lá estavam, todos eles, sãos e salvos. O senegalês Cher Fall explicou o desenlace da saga:
– Andamos por mais quatro horas, estávamos caindo, não tínhamos mais como suportar, até que chegamos em um hotel onde conseguimos táxis para nos trazer ao abrigo. Sobre as brigas, disse que eram desentendimentos em razão das condições adversas, que geraram tensão, nervosismo e acusações infundadas. Mas, garantiu, já estava tudo bem. De fato, os senegaleses que tentaram cruzar o Acre a pé estavam unidos e sorridentes na porção africana do abrigo.
Quando entram no país por Assis Brasil, há duas opções de locomoção: as próprias pernas e os chamados táxis-lotação, que comportam seis pessoas. Com o veículo lotado, os haitianos, que solicitam o refúgio em Epitaciolândia, distante cem quilômetros, pagam cerca de US$ 20 por pessoa para chegar ao abrigo. No caso dos senegaleses, o pedido de refúgio só é permitido em Rio Branco. Até lá, são ilegais, o que leva os taxistas a negar o transporte aos africanos ou a cobrar o dobro em relação aos haitianos.
Os gastos totais não são poucos. Os haitianos precisam desembolsar US$ 3 mil. Os senegaleses, US$ 6,5 mil. Por isso, fazem parte de uma certa classe média dos seus países.
E não basta recurso para a passagem. É preciso garantir o suborno da polícia peruana, que aborda os ônibus enviados por coiotes lotados de imigrantes e cobra “pedágios” entre US$ 100 e US$ 200. Os viajantes precisam se dividir para quitar a extorsão.
Nos trechos a pé pelo Peru, são atacados por pedestres que tomam suas malas. Se aproximam com o pretexto de ajudar os imigrantes exaustos, pegam as mochilas e somem na mata. Outros exigem US$ 20 para não denunciar à polícia.
Viagem final
Pelo terceiro dia consecutivo, um ônibus branco com detalhes em azul, da empresa TransBrasil, encostava na rua de chão batido que levava ao abrigo da Chácara Aliança. A oferta era objetiva: R$ 330 para tomar assento, sair de Rio Branco e desembarcar em São Paulo, o destino idealizado pela maioria dos imigrantes.
– São Paulo! São Paulo! Vamos comprar passagem para o ônibus sair logo – dizia, sempre ao avistar um grupo de imigrantes, o motorista e proprietário Elivaldo Correia, morador de Porto Velho (RO), que tinha o hábito, nas conversas, de chamar os interlocutores pela alcunha de “macho”, assim como usa-se “moleque” ou “xiru” em outras partes do país.
A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), a partir da consulta da placa, informou que o veículo da TransBrasil não estava regular, sem renovar o Certificado de Registro para Fretamento desde 2006. Havia um empecilho para a partida: naquela semana, estavam saindo os ônibus contratados pelo governo acriano rumo ao sul do país. Os imigrantes, mesmo aqueles que não tinham chance de ingressar nos coletivos do poder público, mantinham a esperança de uma reviravolta e seguravam ao máximo o dinheiro de que dispunham. Isso enfraquecia as vendas.
No dia 29 de maio, sexta-feira, um grupo de haitianos diferente da média dos seus compatriotas foi responsável por uma ofensiva. Eles faziam parte de uma classe média, bem vestidos e mais vaidosos do que os demais, ostentando a marra dos jovens dos grandes centros urbanos. Estavam, no máximo, há dois dias no abrigo de Rio Branco. Alguns haviam chegado poucas horas antes, o que indica que o poder aquisitivo desses imigrantes era superior aos demais.
Em poucos minutos, 22 bilhetes de viagem estavam vendidos.
– Hoje vai sair, macho – confirmou Elivaldo, com um bolinho de notas de R$ 100 na mão.
A partida do ônibus reúne simbologia especial aos imigrantes. Entrar no Brasil pelo Acre não significa exatamente a conquista planejada. O Estado do Norte não é o destino, é apenas uma porta. E, para cruzá-la inteiramente, uma série de dificuldades se impõem.
Finalmente, tomar um coletivo rumo às regiões brasileiras mais desejadas, aí sim, é o sinal da consagração, de ter suplantado os ataques da polícia no Peru e a miséria, a doença, a fome e a sujeira no Acre. A relevância dessa transição dentro do território brasileiro torna mais dramática a sina daqueles que ficam para trás. Maxonuy Vertu queria vir ao Sul, mas só tinha R$ 200, menos da metade do valor da passagem de rodoviária.
Numa sexta-feira, passava o tempo em frente ao prédio da administração do abrigo quando veio o aviso: um ônibus extra partiria no sábado rumo a Porto Alegre. Maxonuy se jogou na fila. Lá estavam novamente os haitianos ansiosos, roçando os corpos uns nos outros enquanto aguardavam para preencher a ficha de viagem. Mas, à tarde, um balde de água fria levou embora as emoções dos refugiados: por algum motivo que ninguém por lá soube explicar, a viagem fora cancelada.
Maxonuy estava à deriva em Rio Branco novamente. Os dois amigos que chegaram com ele ao Acre já tinham tomado o seu rumo. Maxonuy andava sozinho. Ele ficou para trás. Ninguém sabe até quando.
Com os 22 imigrantes embarcados, todos haitianos, a reportagem de Zero Hora também comprou duas passagens para se deslocar de Rio Branco, no Acre, até São Paulo. Uma longa jornada de imprevistos, atrasos e conflitos, tecendo o enredo das dificuldades enfrentadas pelos estrangeiros.
Uma tensão percorreu o ambiente logo no princípio. Ao avistarem o equipamento de filmagem, um grupo de haitianos, que depois se posicionou nos bancos ao fundo do coletivo, reagiu com hostilidade. – No photo (sem foto) – diziam, emendando com uma série de xingamentos em crioulo.
Com esse atrito não resolvido, o ônibus partiu às 18h25min daquela sexta-feira, 29 de maio, sob chuva fina. Na saída da cidade, tomou a BR-364, uma vergonhosa estrada do norte do Brasil, com buracos capazes de fazer um carro capotar. O clima inicial era de silêncio. Cansados, os imigrantes repousavam. Como o veículo estava com apenas metade da lotação, muitos ocuparam duas poltronas, deitaram, esticaram as pernas, cobriram os olhos com peças de roupa.
A primeira parada, a da janta, ocorreu às 20h40min. Apenas três imigrantes simpáticos, sentados mais à frente, desceram. A jornada prosseguiu silenciosa. Os únicos sustos eram causados pelos solavancos do ônibus, frequentemente capturado por buracos na rodovia. Havia trechos em que era imprescindível andar em primeira marcha, a menos de 20 km/h. A primeira aventura se apresentou no início da madrugada de sábado, à 00h20min, já em Rondônia. Na escuridão, todos tiveram de descer para a travessia de balsa, no ponto de encontro entre os rios Madeira e Abunã.
Não se enxergava um palmo à frente do nariz. Na escuridão total, a embarcação era guiada com destreza, mas, para imperitos no assunto, era assustador avistar um banco de areia logo à frente, contornado por hábil manobra. Foram 15 minutos de travessia, com névoa, brisa e mosquitos.
Às 4h daquele sábado, uma parada na estação rodoviária de Jacy-Paraná, em Rondônia. Os imigrantes dormiam. Apenas os dois motoristas tomavam café e bebidas energéticas e fumavam. Distante cerca de 50 metros do ônibus, havia um sujeito acocado em frente a uma poça d’água. Com as mãos, revirava o barro. De repente, se ergueu. Era madrugada e ele trajava apenas um calção. De resto, descalço e sujo. Iniciou uma caminhada trôpega, mancava e não conseguia ter agilidade nos passos. Pelas costas, ele se aproximava do repórter fotográfico de ZH.
Alertado, o jornalista procurou se afastar, mas, em um dos movimentos, o homem viu a câmera fotográfica em posição de descanso e se enfureceu.
– NÃO APONTA ESSE TROÇO PRA MIM!!! – esbravejou, tentando iniciar uma perseguição ao fotógrafo, que foi ao encontro dos motoristas.
Depois de gritar algumas palavras incompreensíveis, o sujeito mudou o alvo: começou a vociferar contra um caminhoneiro. Após alguns insultos, o motorista caminhou em direção ao seu veículo, abriu um compartimento atrás da cabine e, dali, sacou um facão, logo apontado ao rosto do indivíduo invocado, que finalmente se afastou. Funcionários do local contaram que, semanas antes, ele havia matado um transeunte com um soco no pescoço, derrubando-o violentamente com a cabeça sobre uma pedra.
Pela manhã, às 6h, o ônibus chegava a Porto Velho, capital de Rondônia. Na esquina da garagem da TransBrasil, duas distribuidoras de bebida, tomadas de gente, tocavam forró a todo volume.
– Porto Velho é uma cidade festeira – explicou o motorista Eldo Souza.
Ali ocorreu uma rápida troca de ônibus. Dois novos condutores também assumiram a direção.
Antes de seguir viagem, uma passada na rodoviária de Porto Velho. Uma haitiana desceu na cidade. Outros seis passageiros, sem nenhuma relação com os imigrantes, subiram.
Com o sol alto, a viagem ficava mais agradável com o vislumbrar da paisagem. Fazendas de gado, aos montes nos trechos de Acre, Rondônia e Mato Grosso, estavam sempre ali. Plantações de soja, algumas de milho. Áreas de mata fechada e rios cheios e correntes.
Monvyn Brown, 35 anos, era simpático e falante. Se comunicava bem em inglês e contava as horas para descer, com mais dois companheiros de viagem, em Cuiabá, de crescente procura. O haitiano é formado em Ciências da Computação e trabalhava no seu país. O salário não garantia a sobrevivência. Tentou ir aos EUA, mas faltou dinheiro. O Brasil surgiu como opção.
– Tenho três amigos em Cuiabá. Minha ideia é consertar computadores lá – contou Brown.
Esposa e três filhos ficaram no Haiti. Uma saudade que apertava, sem mover um milímetro da sua convicção.
– Ficar longe da família é muito difícil, mas isso é a vida – resumiu.
Com formação superior, Brown fala três línguas – crioulo, inglês e francês – e tem raciocínio apurado. Nas primeiras levas de haitianos que chegaram ao Brasil, a maioria tinha terceiro grau completo. Hoje, esse índice caiu e muitos dos que chegam contam com baixa escolaridade.
Num episódio inusitado, Brown foi um caso raro de refugiado que não enfrentou problemas no Peru. Chegou a um posto policial em Porto Maldonado e os computadores estavam pifados. Instalou antivírus e fez uma limpeza nas máquinas. Ganhou a simpatia dos policiais com fama de carrascos.
Um dos passageiros que subiu em Cuiabá era contrário à vinda dos haitianos e senegaleses. Para ele, que não cansava de repetir o discurso em conversas em português, o Brasil está à beira de uma guerra civil e “certamente irá surgir um novo Hitler” para massacrar os imigrantes negros. Brown, em dado momento, quis saber o que aquele homem tanto falava, pressentindo que se tratava de alguma referência aos refugiados. Convicto, assegurou que enfrentar eventuais casos de racismo e xenofobia não irão lhe vergar.
Na manhã de domingo, às 6h45min, o coletivo começou a apresentar problemas. Estava com pouca força no motor. Em uma parada em Várzea Grande (MT), foi diagnosticado que uma mangueira escapava do inter- cooler. O ônibus seguiu lentamente até Cuiabá, onde Brown desembarcou.
Impaciente com a pane logo no momento de descer na sua terra prometida, chamou um táxi, contatou os amigos que vivem na capital do Mato Grosso e partiu, fazendo no celular fotos da cidade que seria seu novo lar. – A coisa certa a fazer é ter um bom emprego para cuidar da sua família. Esse é o motivo de eu ter deixando o Haiti para vir ao Brasil – despediu-se.
A partir daí, começou o calvário. Como era domingo, não havia onde comprar peças para consertar o carro, que parou em duas garagens para pedir socorro. Enjambres foram feitos para manter a mangueira no lugar. A situação se estendeu até as 11h30min, quando a gambiarra finalmente funcionou. Foram quase cinco horas de parada, mas os imigrantes não aparentavam nervosismo.
Depois de feito o reparo, o ônibus precisava subir um trecho pequeno de serra para sair de Cuiabá e seguir viagem. Para o veículo não perder força, o ar condicionado foi desligado. Friorentos, os haitianos não gostam de abrir janelas dos veículos. Também preferem manter as cortinas cerradas. O interior do coletivo virou uma sauna, transportando pessoas que não tomavam banho há quase dois dias. A morrinha subiu. Também na tarde de domingo, as dores nas costas e articulações deram os primeiros sinais. Não havia mais posição que fosse cômoda.
A mangueira escapou mais uma vez no início da noite, na BR-364. No breu, os motoristas desceram com o auxílio de uma lanterna. Os imigrantes os cercaram, curiosos. Enquanto faziam novo enjambre, as carretas passavam zunindo ao lado do ônibus. Depois de cruzar Goiás na madrugada, Minas Gerais foi alcançada na manhã de segunda-feira, quando ocorreu uma parada de mais duas horas em uma oficina mecânica para trocar a mangueira danificada.
A alegria aflorava no ânimo dos haitianos com a proximidade de São Paulo. Estava logo adiante, mas, às 14h30min, na BR-153, ainda no território mineiro, todos depararam com um grave acidente. Duas carretas haviam se chocado frontalmente, após uma delas ter tentado ultrapassagem em local proibido. Duas pessoas morreram, havia vaivém de carros fúnebres, ambulâncias, policiais, escavadeiras e caminhões que recolhiam a carga esparramada na pista. Supersticiosos, os motoristas Sidnei Ferreira dos Santos e Pedro Luiz Oliveira Duarte se encheram de razão para teorizar.
– Viram, todo aquele atraso que tivemos ontem com o problema no ônibus foi para nos tirar do caminho desse acidente – dizia um deles, convencido do milagre.
Depois de duas horas de espera, a estrada seguia bloqueada. Não havia previsão de liberação.
– Por que não nos deixam passar? – reclamavam, já impacientes.
O motorista desistiu de aguardar e pegou uma via alternativa. A partir daí, foram mais nove horas até o desembarque na rodoviária do Tietê, em São Paulo, na madrugada de terça-feira. Na reta final, a hostilidade do grupo do fundo do ônibus à câmera e aos jornalistas já havia minorado. Os irmãos Chery – Rolin, Emmanuel e Rijkaard – já posavam para fotos. Eles são de uma família de imigrantes. Enquanto desembarcavam, a preocupação de Emmanuel era avisar por telefone a mãe do sucesso da jornada. Ela vive em Miami, nos EUA.
Setenta e nove horas depois, São Paulo. Foram três dias completos e mais sete horas de ônibus, sofrendo contratempos, rasgando o Brasil por caminhos tortuosos, superando os medos e os riscos das estradas. Um mundo novo se abria aos 18 imigrantes que chegaram ao centro econômico do país. Quando deixaram o inóspito abrigo na Chácara Aliança, no Acre, avistaram uma placa à esquerda, do lado interno do imóvel, que dizia: “Obrigado pela preferência”. Mas não era preferência. Era apenas sobrevivência.
Carlos Rollsing
(Zero Hora – 07/06/2015)

Nenhum comentário:

Postar um comentário