EX SOVIÉTICOS, ATUAIS BRASILEIROS
Sempre muito adornada, com um sorrisão no rosto e disposta a bater um bom papo com os clientes. Irina Ignatenko é figurinha carimbada na feira de gastronomia e artesanato que ocorre sempre no terceiro domingo de cada mês, na Vila Zelina, zona leste de São Paulo. “Pessoas que gostam da cultura russa podem vir conhecer mais sobre nossos costumes, provar nossa comida e conversar com a gente.”
“Conseguimos ensinar os brasileiros a comer Vareniki, uma massa caseira com recheio de batata e coberta com cebola caramelizada e leite fresco, feita por nós”, diz orgulhosa.
Irina, 33 anos, veio para São Paulo com a irmã e a mãe em 1999, quando ainda era adolescente e deparou-se com o desafio de se adaptar a uma nova realidade, em um país sobre o qual só sabia uma coisa: tinha acolhido seu bisavô e parte da família em 1925 – o que não minimizou as dificuldades práticas do dia a dia.
“Na época não entendíamos nada de português e minha família também tinha dificuldade em falar com a gente, porque minhas tias entendiam pouco russo. Queríamos colocar minha irmã em uma escola particular, mas não conseguíamos uma bolsa de estudos. Também tinha dificuldade em arrumar emprego. No início, distribuía panfletos nos semáforos e depois passei a trabalhar como vendedora em um loja de um real.”
Amizades improváveis
O que Irina, Svetlana e Olga não podiam esperar é que amizades improváveis mudariam a vida de cada uma delas.
“Apareceu um senhor na nossa casa perguntando se éramos russas e revelou que sua mãe também tinha essa nacionalidade. Ele pediu então para prepararmos Borche, uma sopa tradicional que cozinhamos sem carne porque não tínhamos em casa. No dia seguinte, ele voltou com a carne e pediu para que fizéssemos outra sopa. Pouco depois, nos fez uma visita para dar a grande notícia: minha irmã estava matriculada na escola particular onde havíamos tentando uma bolsa”.
Irina descobriu que seu novo amigo tinha ameaçado tirar seus três filhos do colégio, caso a irmã dela não recebesse o benefício.
A sorte grande de Irina surgiu junto de outro estranho que entrou em suas vidas. Ela foi abordada em uma lanchonete onde trabalhava por um estrangeiro que havia descoberto que ela também era imigrante e lhe fez uma proposta irrecusável. Semanas depois da abordagem, Irina começou a trabalhar como assistente de venda em uma boutique do Shopping Morumbi, emprego que abandonou anos depois para ser assistente de relações internacionais em uma empresa de engenharia.
Lembra do Vareniki? Irina ganhou um padrasto graças a esse prato, e de uma forma um tanto inusitada.
“Não tínhamos dinheiro e conhecemos uma senhora que fazia Vareniki. Como ela estava de mudança, perguntou se minha mãe não estava interessada em prepará-lo para vender a sua fiel clientela. Um dia, ligou aqui em casa um descendente de iugoslavo para encomendar o prato. O engraçado é que ele passou a comprar um quilo de Vareniki todas as semanas. Começamos a nos perguntar como ele conseguia comer tanta massa. Quando minha mãe foi à casa dele, deparou-se com um freezer cheio de Vareniki. Foi ali que percebemos que ele comprava tudo aquilo para poder ter mais contato com minha mãe. Hoje, ele conta que se apaixonou por ela no momento que ouviu sua voz ao telefone.”
Svetlana Ignatenko divide-se hoje entre a cozinha e o turismo. Irina garante que a mãe é uma das melhores guias turísticas do país. Foi Svetlana quem foi contratada para acompanhar a equipe de futebol russa durante a Copa do Mundo. A mulher, que exerceu medicina por 20 anos na Rússia, aprendeu no Brasil a se reinventar após se ver incapaz de obter a revalidação de seu diploma diante da urgência de encontrar maneiras de sustentar e criar as duas filhas.
Reinventar-se
Reinventar-se também é o mote de Irina. Hoje, ela ajuda a mãe na cozinha, administra junto de um colega um site de comida russa por encomenda , faz traduções e acompanha turistas e grupos de atores e dançarinos durante viagens ao Brasil. Diante da dificuldade da comunidade russa de manter e difundir as tradições russas, tornou-se voluntária no Grupo Volga, uma associação de descendentes de russos que pretende manter a cultura de seu país por meio das danças, cantos e exposições de artesanato, culinária e atividades esportivas.
Lidar com as adversidades é algo que Irina tira de letra. Até hoje ela se lembra de como se perdeu “cheia de ouro” dentro de uma favela de São Paulo, sem saber falar português, sem saber onde estava, e sem saber o endereço para voltar. “Dois rapazes viram que eu estava perdida e me ofereceram ajuda. Lembro que só conseguia falar ‘venu’, ‘venu’, até eles me deixarem em uma avenida que eu reconheci.”
Irina não nasceu aqui, mas aprendeu a amar o Brasil pelos seus dias ensolarados (“morávamos na Sibéria, onde fazia muito frio e os dias eram muito escuros, então gosto muito dos dias iluminados e alegres daqui”), pelas suas frutas saborosas (“na Rússia temos algumas frutas apenas no verão, mas no Brasil, temos banana 24 horas por dia, 365 dias por ano”), e, principalmente, pelo seu povo bondoso e procrastinador (“hoje eu entendo os hábitos dos brasileiros, mas no início era difícil compreender a impontualidade dos brasileiros e esse costume de deixar tudo para última hora; nós somos pontuais, mantemos a nossa palavra, fazemos o que dissemos que faríamos nem que a vaca tussa!” ).
“As primeiras piadas que eu consegui entender foram ditas na Rádio Nacional”
Antigos e novos
A onda migratória russa viveu três momentos. O primeiro, em 1926, quando os cidadãos daquele país usaram rotas do mar báltico, passando pela Estônia e Finlândia, para fugir do comunismo e aproveitar o incentivo oferecido pelo governo do estado de São Paulo, que oferecia privilégios aos camponeses e trabalhadores do campo.
O segundo, em 1945, quando a União Soviética passou a controlar China, Polônia, Estônia, Tchecoslováquia, Iugoslávia e Bulgária, e refugiados russos que viviam nesses países viram-se obrigados a imigrar novamente (registros mostram que, no período de 1919 a 1947, entraram no Brasil 123.727 imigrantes russos).
E o terceiro, entre 1949 e 1965, quando chegaram ao Brasil aproximadamente 25 mil russos refugiados da revolução cultural chinesa – a maioria dos filhos dos que imigraram para China, fugidos da revolução comunista russa, no fim da primeira guerra mundial. Esses imigrantes eram chamados de refugiados russos, porque chegaram ao Brasil por motivos políticos e religiosos. Ao contrário de povos de outras nacionalidades, eles não podiam voltar para a sua pátria, pois eram considerados dissidentes e desertores pelo governo revolucionário na época.
Victor Emilianovitch Selin, tradutor juramentado, maestro e músico faz parte do contingente de imigrantes russos que chegaram ao Brasil provenientes da China no período de 1954 a 1960, em decorrência do movimento político de Mao-tse-tung, provocado pela morte de Stalin, em 1953. Estados Unidos e Austrália abriram suas portas à imigração dos russos da China, mas a mãe de Victor escolheu o Brasil.
Ambos chegaram a São Paulo, em 1956. Victor tinha apenas nove anos. “Já vinha de um lugar onde todo mundo falava chinês, tinha encontrado um monte de gente falando inglês em Hong Kong, durante a viagem para o Brasil, então não tive nenhuma surpresa, nenhum choque quando cheguei no Brasil, já nasci em um país que não era meu.”
Assim como Irina e sua família, Victor e a mãe também puderam contar com assistência, mas de padres jesuítas, pouco tempo depois do desembarque. Na tentativa de unir a Igreja Ortodoxa Russa e a Igreja Católica Romana, os clérigos criaram um internato para abrigar as crianças russas recém-chegadas, possibilitando que os pais pudessem encontrar um emprego e se estabelecer. “O internato tinha umas 50 crianças, foi uma sorte eu ter sido escolhido, se não fosse isso, teria virado moleque de rua.”
Sua qualificação como tradutor juramentado ele atribui à Rádio Nacional, com a qual aprendeu a falar português. “As primeiras piadas que eu consegui entender foram ditas pelo Carlos Manoel da Nóbrega, Ronald Golias e Sílvio Santos.”
Victor deixou o internato dez anos após seu ingresso, já como um homem, técnico em química, e com carteira de músico profissional. Protagonizou a organização do Coral Melodia, criou o Concerto Russo do Teatro São Pedro em São Paulo e tocou com vários conjuntos para alta sociedade paulistana. Atualmente se dedica, voluntariamente, à preservação e divulgação da cultura russa no coral da Associação Cultural Grupo Volga.
“A Rússia sempre vai estar presente na minha vida”. E não é que depois de ter se divorciado e criado o filho, Victor casou-se pela segunda vez com uma mulher que… estudou na Rússia e fala russo?
Brasil para todos
“O russo que mora no Brasil por um tempo já começa a sorrir e a falar com outras pessoas. Aqui no Brasil você entra no elevador e as pessoas te cumprimentam, no metrô você pode cruzar com pessoas que você nunca viu mas que conversam com você sobre política, sobre o tempo… os brasileiros são muito abertos”.
Roman Anatolievitch Reshtov Tseplik, 37 anos, lembra-se até hoje de um caso atípico ocorrido no metrô de Moscou.
“Depois de morar no Brasil por três anos eu voltei para a Rússia e passei por uma situação inusitada. Entrou uma senhora no metrô, eu dei a ela o meu lugar e a cumprimentei: ‘Olá, bom dia, sente, por favor!’. Ela me perguntou: ‘Você está louco?’. Eu perguntei: ‘Por que?’ e ela respondeu ‘Por que você está sorrindo? Tem algum motivo para sorrir?’. Imediatamente eu respondi: ‘Desculpe senhora, esqueci como é aqui!’.”
“É por causa do tempo, você tem que abrir a boca para sorrir e congela tudo, (risos)”, ele me confidencia.
Roman nasceu no Cazaquistão, mas mudou-se para a Rússia com os pais em 1993, quando ainda era muito jovem. Depois de adulto, voltou para sua terra natal, mas não demorou muito a deixá-la para embarcar rumo ao Rio de Janeiro com o marido, engenheiro de petróleo. “Não sabíamos nada sobre o Brasil, pensávamos até que o idioma falado aqui era o brasileiro e não o português”, conta.
Ao contrário de Irina e Victor, Roman e o marido desfrutaram de uma vida confortável desde o momento que chegaram. Os desafios que surgiram são de outra natureza. Roman é jornalista. Chegou a trabalhar no leste europeu como apresentador de TV, mas no Brasil se viu incapaz de exercer a profissão, por causa do sotaque, ainda proeminente, mesmo após 12 anos de vida no Rio de Janeiro. Até tentou trabalhar como correspondente internacional, mas cansou de escrever sobre futebol, carnaval e Rio de Janeiro.
Idas e voltas
Voltou para o Cazaquistão após receber um convite para trabalhar como editor e apresentador de um reality show, mas quando o contrato acabou resolveu voltar para o Rio. Daí arriscou-se no comércio – como vendedor em uma joalheria – e no turismo – como guia de grupos vindos do leste europeu.
A experiência também não deu certo. Os conflitos entre Rússia e Ucrânia tiveram um impacto negativo nos negócios. A solução foi partir para a alta gastronomia.
Há dois meses, Roman estuda a arte dos grandes chefs de cozinha e toca o site matrioshka.city com Irina (isso mesmo, a mesma Irina do início da reportagem!). A clientela é composta majoritariamente por russos e descendentes, mas também há clientes brasileiros. Os pratos prediletos do público brazuca são os já citados Borche, sopa tradicional russa, e o Vareniki, os pasteis cozidos recheados de carne.
A grande meta de Roman hoje é abrir um estabelecimento especializado em comida soviética, é claro, no Rio de Janeiro.
“Sabe, eu me sinto em casa. Tiramos nosso visto de permanência, obtivemos a união estável e depois nos casamos. Vou tirar meu passaporte brasileiro”.
Do Brasil, Roman coleciona apenas boas e belas histórias, exceto uma.
“Uma vez eu escutei alguém gritar: ‘gringo, o que você está fazendo aqui?, vai embora!’. Eu respondi: ‘Eu só atrasei alguns séculos, todo mundo chegou aqui, só os índios podem falar ‘vai embora’, seus pais, avós ou bisavós também vieram para cá’.“
“Como falam, o Brasil é um país de todos.”
Logo se vê que Roman se sente em casa… A simpatia e a irreverência do brasileiro ele já aprendeu.
Mayara Moraes
(Terra – 13/06/2015)
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