Refugiados nas fronteiras: a política punitiva do governo húngaro para além do referendo
Como parte da série “Deslocados e Descartáveis”, a pesquisadora social Bruna Kadletz visita uma zona de trânsito na fronteira entre Hungria e Sérvia e reflete sobre a agenda xenofóbica de Viktor Orban que exclui solicitantes de asilo da sociedade.Por Bruna Kadletz
Publicado originalmente no portal News Deeply – acesse aqui (em inglês)
Fronteira Hungria-Sérvia – No último domingo (02), o governo húngaro fez a seguinte pergunta para seus cidadãos: “Você quer que a União Europeia (UE) determine o reassentamento obrigatório de cidadãos não-húngaros sem a aprovação da Assembleia Nacional?”
A pergunta referia-se ao plano da UE de redistribuir os solicitantes de asilos e migrantes que estão atualmente presos na Grécia e Itália, aguardando ansiosamente a decisão das autoridades europeias sobre o seu destino.
Apesar de mais da metade da população votante não ter comparecido ao referendo, não é de se surpreender que aproximadamente 95% do público que votou tenha rejeitado o plano de redistribuição da UE, o qual sugere o reassentamento de 1.294 refugiados na Hungria.
A majoritária rejeição pública ao reassentamento de refugiados na Hungria pode encorajar mais restrições legais e políticas dentro do país.
O referendo do dia 02 de outubro é parte de uma ampla campanha patrocinada pelo Estado que não mede esforços em abusar de refugiados e tolher oportunidades de reassentamento.
Durante o verão europeu, o governo húngaro disseminou mensagens xenofóbicas com uma eficiência alarmante. Pôsteres nas paradas de ônibus, placas nas ruas e um livreto de 18 páginas – que foi distribuído para mais de 4 milhões de casas – retratavam solicitantes de asilo como ameaças a Europa e cultura húngara.
Políticos húngaros se referem a refugiados e migrantes com “intrusos”, “terroristas em potencial” e “veneno”, sendo que um parlamentar chegou a sugerir que cabeças de porcos deveriam ser expostas na fronteira como forma de desencorajar muçulmanos de atravessarem para o país.
O fechamento da principal rota de migração pelos países balcânicos em março é mais um evidente exemplo de uma política punitiva que emprega força contra pessoas oriundas de zona de guerra. A lógica que fisicamente restringe e isola solicitantes de asilo os considera descartáveis e desqualificados de reconhecimento humano ou assistência humanitária.
Enquanto que barreiras físicas e legais não pararam por completo o movimento de pessoas pelos Bálcãs, tais barreiras certamente intensificaram a catástrofe humanitária na região. Milhares de solicitantes de asilo estão atualmente presos em condições desumanas em campos e zonas de trânsito.
Um desses campos está localizado em Kelebija, na fronteira entre Hungria e Sérvia. Durante uma visita no final de agosto, eu pude testemunhar o estado deplorável no qual quase 200 pessoas estavam vivendo, incluindo mais de 40 crianças e um recém-nascido que chegou ao mundo em outro campo de refugiados – em Idomeni, na Grécia.
O governo húngaro gerencia sua fronteira ao permitir que uma média de 30 pessoas previamente registradas entrem no país por dia. Este mecanismo de controle prioriza famílias, colocando homens solteiros no final da fila.
Enquanto isso, acampamentos informais são estabelecidos nas zonas de trânsito, onde refugiados e migrantes devem permanecer antes de cruzarem as fronteiras.
Oficiais da agência para refugiados da ONU, o ACNUR, e a polícia de fronteira húngara visitam regularmente a zona de trânsito perto de Kelebija, ordenando a saída de voluntários e organizações não autorizados. Somente instituições creditadas estão licenciadas a oferecer assistência humanitária.
Apesar de supostamente proteger pessoas deslocadas do tráfico humano tão comum na região de fronteiras, essa forma de posse sobre a vida dos refugiados torna as condições desumanas do campo invisíveis para a comunidade internacional.
De acordo com organizações locais, assistência humanitária básica aos refugiados foi criminalizada nesta zona de trânsito. Voluntários que atuam na zona reportam que autoridades da fronteira tem confiscado os itens distribuídos para as pessoas em necessidades. Ainda assim, muitos voluntários continuam a distribuir alimentos e roupas como forma de preencher os vazios deixados pelo governo e organizações internacionais.
Ao caminhar pelo campo, uma agente da ACNUR me garantiu que os refugiados e migrantes que residiam nas barracas estavam completamente cobertos pela agência da ONU. Contudo, uma breve olhada conta uma história diferente.
Jean Asselborn, o ministro de assunto exteriores de Luxemburgo, disse recentemente que os húngaros tratam solicitantes de asilo “pior que animais selvagens”. Asselborn chegou a sugerir a expulsão da Hungria da União Europeia devido ao seu tratamento aos solicitantes de asilo. O tratamento que eu observei na zona de trânsito húngara confirma as fortes palavras do ministro.
Não existem nem abrigos apropriados nem chuveiros no campo. O cheiro das crianças revela há quanto tempo elas estão sem tomar banhos. Água é escassa. Uma única torneira serve toda a comunidade. A grande maioria desses residentes, que escaparam de dificuldades extremas, parece estar determinada a suportar os desafios de encontrar um local seguro, onde eles possam reconstruir suas vidas.
Viktor Orban, o primeiro-ministro da Hungria, tem sido uma figura central na fabricação de mais problemas e dificuldades para refugiados, abrindo um caminho perigoso para os países vizinhos que seguem a mesma política punitiva.
Desde o ano passado, quando mais de um milhão de solicitantes de asilo atravessaram os Bálcãs, a Hungria tem aumentado as medidas físicas e legais para bloquear o movimento de pessoas em busca de refúgio.
Após elevar uma intimidadora cerca de arame farpado de 175 km de extensão ao longo da fronteira com a Sérvia em setembro de 2015, a Hungria implementou pesados controles de fronteira no último 5 de julho – reforçando poder militar e criminalizando refugiados. De acordo com as regras do governo, autoridades húngaras podem expulsar qualquer refugiado ou migrante sem documentos que for pego pela polícia num raio de 8 km da fronteira. A expulsão ocorre sem análise do pedido de asilo, o que viola regulamentos da União Europeia.
O regime anti-migração de Orban está em paralelo com o que Henry Giroux, um acadêmico americano que foca em cultura e educação, chamou de “biopolítica descartável” – modos punitivos e brutais de governar populações que restringe aqueles considerados com menos valor para a sociedade a zonas de exclusão, onde os serviços mais básicos não estão disponíveis.
Orban nos mostra como governos podem manipular e moldar opinião pública, além de serem instrumentais na produção de vidas descartáveis em sociedades supostamente democráticas.
Ao substituir proteção aos refugiados por propagandas xenofóbicas e expulsões patrocinadas pelo Estado, o governo húngaro tem incitado nacionalismo e medo dentro da sua sociedade.
A implementação dessas estratégias políticas tem impedido soluções humanas e sustentáveis para o sofrimento dos refugiados ao redor do mundo, contribuindo fortemente para a presente crise de migração global. Gostando ou não, o reconhecimento da nossa humanidade em comum nunca foi mais essencial.
Como eu mencionei no meu artigo prévio, a chamada crise dos refugiados existe em um contexto global interconectado, e não em um plano paralelo e distante que nós podemos nos manter imunes e separados.
Em tempos de retóricas divisórias e cheias de ódio, nós devemos elevar nossos padrões éticos, particularmente em termos de como nós – individualmente e coletivamente – respondemos as necessidades dos mais vulneráveis dentre nós.
Os húngaros tiveram em suas mãos uma oportunidade preciosa com este referendo. O voto ofereceu uma chance histórica para que eles refletissem sobre o seu próprio passado e traumas na busca por refúgio durante a Revolução Húngara de 1956.
Este poderia ser o momento de retribuir a solidariedade e hospitalidade que a geração de refugiados recebeu.
Mesmo que a legitimidade do referendo seja questionável, já que o comparecimento foi baixo, a deficiência pública em demonstrar empatia e solidariedade demonstra como a lógica das vidas descartáveis está enraizada no inconsciente coletivo. Ainda se acredita que determinadas vidas e povos não sejam merecedoras de acolhimento.
Como John Powell, acadêmico que escreve sobre os direitos civis nos EUA, sempre diz “ninguém deve ser expulso do círculo de cuidado humano”. Os esforços para expulsão social somente intensificam e prolongam a crise, como nós podemos testemunhar atualmente – seja no caso das comunidades negras destituídas ou na xenofobia contra migrantes ao redor do mundo.
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