UMA VIDA EM TRÂNSITO
Segundo a tradição de família, Eloísa Martin* teve uma trajetória
bastante atípica. Nascida em Bahía Blanca, com o pai advogado e mãe
dona-de-casa, com quatro irmãos – isto mesmo, todos homens, menos ela –
esperava-se da filha mais velha uma boa formação e que continuasse a
seguir a vida baseada nos valores tradicionais, tudo isso com filhos e
perto de “casa”. Entretanto, tradição não foi bem o caminho que a
seguir.
Uma carreira não era um fator tão esperado. Eloísa foi a primeira
mulher de sua família a se formar no ensino superior. Escolheu
Sociologia, apesar de querer fazer Cinema, Artes, Relações Públicas…
enfim, tantas áreas que uma desenvoltura de 17 anos não permitiria
escolher tão depressa. A orientação vocacional e os horários flexíveis
da carreira profissional que o curso lhe proporcionaria contribuíram
para a escolha. Não foi simples convencer os pais a se mudar para Buenos
Aires. Foi um choque.
A Universidade de Buenos Aires promovia ao aluno um senso de
autonomia muito grande. Um senso além do necessário, na realidade. Isso
se dava pela má infraestrutura da faculdade, que subjugava o aluno à sua
persistência em querer uma formação satisfatória. De qualquer forma,
isso teve seu valor positivo.
Esta persistência permitiu à Eloisa encontrar um professor, fora da
UBA, que a ajudasse com sua linha de pesquisa, religião, e este mesmo
professor a indicou que começasse seus estudos de mestrado no Brasil.
Eloísa chegou a pensar em França, Inglaterra, mas por fim concordou com a
sugestão de seu orientador. E aí, começava mais uma transição.
O Brasil, de fato, tornaria as coisas menos bruscas em mudanças.
Segundo o seu mentor, a cultura era um pouco semelhante e o campo de
trabalho era próximo à região Sul, onde Eloísa se instalou. Menos
bruscas não significam não-bruscas. Muito menos, para a família, que
entrava em estado de choque mais uma vez.
Após o mestrado no Rio Grande do Sul, Eloísa partiu para o doutorado
no Museu Nacional, Rio de Janeiro. As notícias sobre a cidade não eram
nada boas, o clima de insegurança era grande. Ao realizar o doutorado, a
surpresa viria na aprovação dos candidatos: nos primeiros 10 lugares, a
maioria era de argentinos. Fez-se o bafafá. Eram 55 candidatos, e
metade das vagas iriam para os estrangeiros, que eram, sobretudo, os
primeiros colocados.
No doutorado, pelo número de argentinos, havia lá seus rituais para
lembrar das origens. Estava aí uma coisa que entediava Eloísa. “Estamos
no Rio, vamos fazer coisas de cariocas!”. Eloísa não é lá a maior
entusiasta de guetos… isso não quer dizer que não carregava afeto e
algumas saudades. No Brasil, parece que não há o hábito de se discutir
política, de saírem de uma conversa de bar verdadeiramente magoados,
coisa que sente muita falta.
Na metade do doutorado, voltou para a Argentina, e complementou a
bolsa que recebia do Museu com uma no país. O medo da vez era o que
fazer após o fim do doutorado. O espaço de trabalho no Brasil não estava
em boa situação naquele momento. Eloísa fez então, perto do fim de seu
curso, um concurso para o CONICET, no qual passou. Ficou também três
meses na Noruega, antes de ser efetivada no novo emprego. Para a
entrevistada, não havia nada de glamoroso nisso. Era tudo questão de
sobrevivência.
A readaptação na volta ao país de origem não foi das melhores.
Evidentemente, “o mundo continuou a rondar sem sua presença”. Uma boa
parte dos amigos estava com filhos, outra não estava mais na cidade. Não
estava mais habituada com a forma de vida, sentia um estranhamento. As
redes, os laços, a política, já não eram mais os mesmos. E as formas de
sociabilidade pareciam estranhas.
Seu futuro marido, brasileiro, começou a procurar empregos na
Argentina. Mas, mais uma vez, peça do destino, abriu uma vaga na
Universidade de Brasília. Era, portanto, um lugar mais perto de onde o
namorado morava, e, logo, uma nova possibilidade. Possibilidade esta que
tinha seus custos; foi difícil sair de um emprego com estabilidade sem
saber o que seria do futuro, e a impressão que tinha era que nunca,
nunca ninguém havia se demitido de um posto de concursado.
Já na primeira reunião de departamento da UnB, uma antiga professora
joga na mesa sua profunda mágoa que a nova contratada tenha passado.
Estava ressentida por seu orientando não ter passado, para dar lugar a
uma “morta de fome vinda da Argentina”. Entretanto, fazer seu trabalho
bem era angariar bastantes elogios, e foi o que aconteceu. Logo na
primeira turma foi eleita a homenageada.
Ainda na Universidade de Brasília, fez rapidamente amizade com uma
das professoras. Ela era argentina também. Mas é muito importante
pontuar que ambas não eram amigas por causa de sua origem. A amiga, um
dia, a confidenciou, como um desabafo, uma declaração: “Eu sou sua amiga
porque você é legal, temos o senso de humor porcaria, mas não, não
mesmo, não sou sua amiga por você ser argentina também”.
A rotina de viajar para ver o namorado ainda era um pouco difícil,
mesmo morando em Brasília. Eloísa começou a pensar em formas de
conseguir uma vaga no Rio de Janeiro. Pensou em transferência, mas o
medo de ser alocado em “qualquer-vaga” foi grande. Mais uma vez, o
destino conspirou em favor e uma vaga para o Departamento de Sociologia
da UFRJ abriu. Preparar um concurso e estar trabalhando ao mesmo tempo
era difícil. Segundo Eloísa, “por sorte” passou. “Sempre tem um pouco de
sorte”. O que parece, entretanto, é bastante mérito. E o Departamento
da UnB ficou a se perguntar o que fizeram para professora tão boa
partir.
Ir para o Rio era o sonho feito realidade, sobretudo por estar na
UFRJ. Eram, em menos de 7 anos, bruscas transições, mudanças de países,
de estado, onde se perde muita coisa, de afetividade, de investimentos.
“Se algo definir que eu devo mudar mais uma vez, eu mudo. Se amanhã
aparece um projeto melhor, uma leitura mais interessante, eu parto.
Minha vida virou uma vida em trânsito. Nada é definitivo”.
A impressão que fica, após tantas mudanças, é que as mudanças são
mais sentidas pelo tempo de estadia do que algum tipo de choque. Mas, se
é para sentir mudanças, que sejam sentidas.
Bárbara Machado
*Eloísa Martin é professora do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, vinculada ao Departamento de Sociologia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro.