Porto Alegre, sábado, 16 de abril de 2016. Atualizado às 14h44.
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mercado de trabalho
Notícia da edição impressa de 04/04/2016.
Alterada em 01/04 às 19h32min
'Sonho brasileiro' atrai imigrantes e refugiados
J.TAVARES/ACNUR/DIVULGAÇÃO/JC
Volume de pedidos de permanência no País por estrangeiros cresceu 1.240% entre 2010 e 2014
Roberta Mello
O número de refugiados e de imigrantes que buscam
oportunidades de trabalho no Brasil é cada vez maior. As solicitações de
refúgio para o País cresceram mais de 930% entre 2010 e 2013 (de 566
para 5.882 pedidos). A quantidade de refugiados atestados pelo Comitê
Nacional para Refugiados (Conare), órgão vinculado ao Ministério da
Justiça, segue a mesma trajetória ascendente: em 2010, 150 foram
reconhecidos, enquanto até outubro de 2014 (dados mais recentes) houve
2.032 deferimentos pelo comitê, um acréscimo aproximado de 1.240%. O
Conare contabiliza o total de 8,4 mil refugiados legalizados, de 81
nacionalidades distintas - incluindo os reassentados. Os principais
grupos são provenientes da Síria, Colômbia, Angola e República
Democrática do Congo (RDC).
São pessoas que decidiram investir no chamado "sonho brasileiro".
Pesquisa divulgada em março pela Fundação de Economia e Estatística do
Rio Grande do Sul (FEE) explica que o processo de reestruturação do
mercado de trabalho brasileiro, a partir de 2004, com a geração de
empregos formais, passou a atrair estrangeiros. O Brasil, que já
exportou muitos trabalhadores em busca do "sonho americano", mais
recentemente passou a representar uma esperança para muitos imigrantes,
principalmente haitianos.
Em 2014, os deslocamentos forçados afetaram 59,5 milhões de
pessoas. Somente os conflitos e as perseguições obrigaram uma média
diária de 42,5 mil pessoas a abandonar suas casas e procurar proteção em
outro lugar, dentro de seus países ou fora deles, conforme os dados
mais recentes da Agência da ONU para Refugiados (Acnur).
Entre as pessoas deslocadas estão refugiados (14,4 milhões sob
mandato do Acnur) e 5,1 milhões registrados pela Agência das Nações
Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (Unrwa), deslocados
internos (38,2 milhões) e solicitantes de refúgio (1,8 milhão). Quanto
aos imigrantes, muitas vezes, saem de seus países por situações
semelhantes às dos solicitantes de refúgio, ainda que não se enquadrem
neste quesito dentro dos conceitos preestabelecidos pela comunidade
internacional.
Contudo, a recessão econômica e outras barreiras, como o idioma,
cultura diferente e a discriminação, têm levado muitos a partirem atrás
de alternativas em outros países ou até mesmo a voltarem para sua terra
natal. É o caso dos imigrantes haitianos que vêm perdendo seus empregos
na indústria, dos solicitantes de refúgio senegaleses, que se viram
obrigados a entrar para o mercado informal, e de refugiados sírios e
palestinos que têm dificuldades imensas em validar diplomas e se colocar
em um mercado retraído.
Quando os estrangeiros vieram em massa para o Brasil, a economia
estava forte, e postos de trabalho, principalmente na indústria e na
construção civil, ficavam em aberto durante muito tempo. "A oferta de
vagas também era farta, diferentemente da que temos hoje. Acredito que
seja passageiro, mas essas pessoas estão em vulnerabilidade e não podem
esperar", destaca o coordenador do Comitê Estadual de Atenção a
Migrantes, Refugiados, Apátridas e Vítimas de Tráfico de Pessoas
(Comirat/RS), Sérgio Nunes.
Perfil dos estrangeiros
São consideradas refugiadas aquelas pessoas que se enquadram em um
dos cinco pilares estabelecidos durante a Convenção de Refugiados de
1951, que estabeleceu o Acnur. O documento determina que um refugiado é a
pessoa que, "temendo ser perseguida por motivos de raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, encontra-se fora do
país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não
quer valer-se da proteção desse país".
Os refugiados reassentados são aqueles que não podem voltar para casa por enfrentarem perseguições contínuas.
Os imigrantes, muitas vezes, saem de seus países por situações
semelhantes às dos solicitantes de refúgio, ainda que não se enquadrem
nesse quesito dentro dos conceitos preestabelecidos pela comunidade
internacional.
Informalidade é alternativa encontrada por senegaleses
Ingressar no mercado formal é o de desejo
de todos. Porém, para os senegaleses que vivem em Porto Alegre, o
mercado informal se mostrou como a opção mais digna e lucrativa.
"Conseguir um emprego está muito difícil, e vender na rua é alternativa
para não ficar parado", lamenta Mor Ndiaye, presidente da Associação dos
Senegaleses de Porto Alegre.
O Senegal despertou o interesse de empresas de corte de carnes do
Brasil pela experiência no abate halal, que segue os preceitos da
religião muçulmana e deve ser realizado por um muçulmano. Mas o que
muitos não sabem é que a venda de mercadorias nas ruas também é uma
tradição daquele país.
Camila Campielo, do Grupo de Assessoria a Imigrantes e Refugiados
(Gaire) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), salienta
que muitas pessoas acreditam que o refugiado, solicitante de refúgio ou
imigrante chega ao novo lar disposto a abrir mão de tudo aquilo que
viveu, de sua cultura e de seus hábitos, mas isso não é verdade. "Os
senegaleses são um ótimo exemplo disso. Eles têm tradição nesse modo de
comércio e trazem produtos na vinda ao Brasil, quando passam pelo
Paraguai, por exemplo", explica.
Ndiaye chegou há oito anos no Rio Grande do Sul para trabalhar em
uma empresa do ramo alimentício, fugindo de graves violações nos
direitos humanos e conflitos em sua terra natal. Há um ano, atua como
auxiliar administrativo e casou-se com uma brasileira. Porém, acompanha a
dura espera por um visto relatada pelos mais de 270 senegaleses que
vivem na Capital e participam das ações da associação.
Os senegaleses integram, atualmente, o maior contingente de
solicitantes de refúgio do Estado. Nestes casos, explica Camila, eles
estão cobertos pela Lei do Refúgio no Brasil e, ao fazer o pedido na
Polícia Federal, saem com um protocolo que lhes dá o direito a fazer a
Carteira de Trabalho e ter acesso ao sistema trabalhista nacional.
A Associação dos Senegaleses trabalha para prestar auxílio a todos,
ajuda a manter as tradições e a coesão entre a comunidade. Ndiaye conta
que os encontros ocorrem duas vezes por mês e tratam desde aqueles
casos mais sérios de homens e mulheres que passam por dificuldades até a
produção de festas abertas ao público em geral a fim de aproximar os
brasileiros à cultura senegalesa.
Sobra qualificação, mas faltam oportunidades
O receio de ser identificado e sofrer
perseguição por ter deixado sua terra natal em função da guerra
protagonizada pelo Estado Islâmico faz com que o sírio A.K. peça para
não ter seu nome revelado. Em abril, completa um ano de sua chegada a
Porto Alegre, período que ainda não foi o suficiente para conquistar um
emprego na sua área de atuação, a de tecnologia farmacêutica,
principalmente pela resistência das instituições educacionais em validar
o diploma obtido no exterior. As universidades brasileiras têm
autonomia para decidir sobre a validação dos certificados de conclusão
do curso.
Karin Wapechowski, coordenadora do Programa de Reassentamento
Solidário de Refugiados, garante que esta é uma das grandes frustrações
de muitos refugiados, que acabam sendo subaproveitados pelo mercado de
trabalho. Além disso, a língua é outra barreira importante apontada por
quem chega ao País.
A.K. mantém contato com familiares na Síria e com amigos em Cuba,
onde estudou antes de vir ao Brasil. Ele pensa em voltar para a estrada
em breve caso não consiga um emprego na área escolhida. "Com a crise no
Brasil e o aumento no desemprego, se os brasileiros estão com
dificuldade para trabalhar, imagina eu. Todo processo é muito demorado, e
a minha vida fica muito ruim nessa incerteza toda", reclama o refugiado
sírio, salientando a demora em encontrar informações. A.K. é mantido
pelo Programa de Reassentamento Solidário, mas diz que não quer
continuar sendo subsidiado. "Eu quero trabalhar, levar uma vida normal."
Rio Grande do Sul está entre os principais destinos no País
O Rio Grande do Sul está entre os
principais destinos de quem chega ao Brasil em busca de uma vida melhor.
Em 2014, a maioria das solicitações de refúgio se concentrou em São
Paulo (26%), Acre (22%), Rio Grande do Sul (17%) e Paraná (12%).
Regionalmente, as imigrações estão concentradas no Sul (35%), Sudeste
(31%) e Norte (25%).
Segundo levantamento realizado entre julho e agosto de 2015 pelo
Núcleo de Pesquisa do Cibai Migrações (Centro Ítalo-Brasileiro de
Assistência e Instrução às Migrações), o Estado conta com mais de 13 mil
refugiados, divididos entre mais de 100 municípios. A maior parte dessa
população está em cidades serranas, como Caxias do Sul (com 2 mil
refugiados) e Bento Gonçalves (1,3 mil), Passo Fundo (1,1 mil pessoas em
situação de refúgio), Lajeado e Porto Alegre, onde a estimativa aponta
mil refugiados em cada uma.
Colombianos, palestinos, sírios, afegãos e, mais recentemente,
cingaleses (naturais do Sri Lanka) são as principais nacionalidades
presentes em território gaúcho, conforme a coordenadora do Programa de
Reassentamento Solidário de Refugiados, realizado pela Associação
Antônio Vieira (Asav), Karin Wapechowski.
O Programa de Reassentamento Solidário executado no Rio Grande do
Sul é vinculado à Acnur e busca oferecer uma opção de refúgio com
integração total à comunidade local a quem já passou por experiências
anteriores que não deram certo. Karin explica que o Reassentamento
Solidário se torna opção no caso de pessoas que estão com sua vida
comprometida no país de origem e também no país de asilo.
O programa é único no Brasil e começou em 2003 com a vinda de
migrantes da Colômbia. "A ideia era responder à vinda de colombianos,
uma população que chegava fugindo da perseguição, muitas vezes
individualizada, no país de origem e, diferentemente de outras
nacionalidades, não podia ficar junto com seus conterrâneos por questões
de segurança. Era para ser temporário, mas o conflito colombiano se
estende até hoje e, em 2007, recebemos palestinos. A partir de 2014,
abrimos vagas para Sri Lanka, Síria e Afeganistão", recorda Karin.
Nos quase 13 anos de existência, o Reassentamento Solidário tem
apoio da Organização das Nações Unidas e já recebeu cerca de 360
pessoas. Todas recebem acompanhamento de uma equipe especializada,
pagamento de aluguel durante um ano, auxílio para subsistência e
assessoria para a construção de um planejamento de vida de acordo com a
vocação e os desejos do refugiado.
Karin explica que, para isso, é fundamental compreender as
particularidades de cada povo. "Os colombianos gostam muito de trabalhar
em grandes empresas, em indústrias. Por isso, há muitos na Serra e na
Região Metropolitana de Porto Alegre. Já os palestinos buscam gerir o
próprio negócio, normalmente dando prioridade a cidades que já têm uma
comunidade árabe constituída", comenta Karin.
O Rio Grande do Sul abriga a maior comunidade palestina do Brasil e
a segunda da América do Sul. Basta andar pelas ruas de cidades como
Santa Maria, Venâncio Aires, Santana do Livramento para ter certeza da
onde ela está. A maior parte é dona de restaurantes, lojas e outros
empreendimentos comerciais.
Programas de auxílio se multiplicam
As reclamações levadas por refugiados ao
Centro de Referência em Direitos Humanos, situado no Centro de Porto
Alegre, motivou a Defensoria Pública do Estado a encabeçar uma série de
campanhas e mutirões a fim de garantir o acesso a serviços públicos
básicos, como saúde e educação, e ao emprego. A linha de ação voltada ao
apoio de refugiados e imigrantes em situação de vulnerabilidade social
foi criada no ano passado e se somou às ações de combate à violência
doméstica e à violência estatal (quando os direitos humanos são violados
pelo poder público).
O objetivo central, conta a defensora pública Luciana Kern, é
dirimir as barreiras impostas pelo idioma e pela burocracia. Também faz
parte das metas auxiliar com o pedido de visto - seja ele humanitário,
de turista ou de trabalho - ou de realizar o pedido de refúgio - que
desde a efetivação da solicitação e entrega do formulário já garante o
direito a permanecer em território nacional.
Outra iniciativa é o Comitê Estadual de Atenção a Migrantes,
Refugiados, Apátridas e Vítimas do Tráfico de Pessoas (Comirat), que,
neste ano, iniciou a construção de uma casa de acolhimento com
capacidade para abrigar 50 pessoas. "A ideia é oferecer abrigo até que
seja emitida a documentação e se consiga colocação no mercado de
trabalho", informa o coordenador do comitê, Sérgio Nunes.
A Secretaria da Saúde de Porto Alegre vem capacitando agentes que
atuem em bairros onde há maior contingente de estrangeiros em situação
de vulnerabilidade, como Lomba do Pinheiro, Agronomia, Restinga e
Sarandi, de forma a ampliar o tratamento dessas pessoas. A assessora
comunitária da secretaria e idealizadora do curso, Fabiana Ninov, conta
que o projeto é pioneiro no Brasil e não funcionaria se não contasse com
imigrantes no corpo docente. "Quem melhor do que um haitiano para
ensinar a sua língua?", exemplifica Fabiana.
A tarefa coube a Alix Georges, que dá aulas de creole, língua
tradicional do Haiti, para os agentes de saúde. "O Brasil é formado por
muitos povos, e viemos para cá com muito a ensinar. As pessoas têm que
querer aprender com os imigrantes e refugiados", destaca o haitiano.
Residente em Porto Alegre há 10 anos e formado em Engenharia de
Computação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Ufrgs,
Georges também passou a servir de facilitador aos conterrâneos que
deixaram a terra natal após o terremoto que devastou o Haiti, em 2010.
Um dos principais focos das iniciativas recentes é justamente ir
além do assistencialismo, valorizando a cultura e os hábitos dos
imigrantes e dos refugiados. É nisso que acredita a integrante do Grupo
de Assessoria a Imigrantes e Refugiados (Gaire) da Ufrgs, Renata
Campielo, formada em Relações Internacionais. O grupo faz parte do
Serviço de Assistência Jurídica (Saju) da universidade e presta
assessorias jurídica, psicológica e social gratuitas a imigrantes,
refugiados e a solicitantes de refúgio.
O trabalho é realizado por estudantes e profissionais de diferentes
áreas, como Direito, Relações Internacionais e Ciências Sociais. No
entanto, o poder público ainda encara um desafio que parece não ter fim
em um futuro próximo, já que o número de estrangeiros que chega ao País
continua crescendo.
Haitianos sentem falta do 'boom' de oferta de vagas
Chegados em um momento de forte
desenvolvimento econômico e com setores empresariais carentes de mão de
obra, os haitianos rapidamente foram recrutados por empresários gaúchos.
"Muitos empresários iam até o Acre, porta de entrada da maioria, e
traziam ônibus cheios de pessoas", lembra a doutoranda e mestre em
Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Ufrgs, Aline
Passuelo. Contudo, muitos não conseguiram obter o visto de refúgio por
não se enquadrarem em um dos princípios que definem essa condição. Eles
saíram por questões ambientais, uma causa de fuga que vem sendo
amplamente discutida dadas as mudanças climáticas que o mundo tem
passado.
Uma das empresas que contratou mão de obra haitiana foi a indústria
alimentícia Oderich. Com sede em São Sebastião do Caí, a companhia
chegou a contar com 100 profissionais estrangeiros em agosto de 2015, a
maioria do país caribenho. A empresa, que investiu na formação dessas
pessoas com o apoio de outras entidades locais e da população, viu o
número diminuir para 40 até o início deste ano, principalmente em função
da desvalorização do real frente ao dólar. A gerente de Recursos
Humanos, Letícia Oderich, diz que a maior parte dos estrangeiros,
incluindo senegaleses e ganeses, enviam dinheiro em dólar para a
família.
Os imigrantes haitianos foram a primeira nacionalidade a conquistar
o direito ao visto humanitário, porém isso ocorreu apenas em outubro do
ano passado, após muito tempo de espera e dúvida. O governo federal
concedeu o visto de residência permanente a 43.781 haitianos. O visto
humanitário não os configura como refugiados, mas dá o direito de
continuar no Brasil e ter acesso a benefícios sociais, como, por
exemplo, a previdência social.
Porém, além da questão financeira, outros motivos têm levado
imigrantes a darem adeus ao País. "Cerca de 12 mil pessoas voltaram para
o Haiti completamente frustradas, em primeiro lugar, com o racismo,
algo que não conheciam até chegar ao Brasil", lamenta o haitiano Alix
Georges. O segundo motivo, aponta ele, foi a escassez de emprego. De
acordo com a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), desde 2013, o
maior contingente de estrangeiros formais é do Haiti, totalizando
119.312 carteiras assinadas em 2014, volume 107,5% em comparação a 2010,
ano em que os haitianos passaram a chegar em maior quantidade em função
do terremoto que assolou o país.
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