terça-feira, 11 de setembro de 2012

Filmes, vídeos e livros

BRASILEIROS: ACOLHEDORES, PORÉM, PRECONCEITUOSOS

No início dos anos 1990, um pesquisador francês conseguiu autorização da universidade em que estudava, no Rio de Janeiro, para apresentar uma video dissertação. Sob o título “Tem que ser baiano?”, ele retrata o preconceito contra os migrantes nordestinos, em São Paulo, aguçado à época pela presença de uma mulher paraibana, à frente da maior prefeitura do país.
O vídeo perfila depoimentos diversos. Um deles, contrapondo-se à presença dos nordestinos na cidade, embute um total esvaziamento de memória. Seu autor, com esmero na entonação de voz e gesticulando, como quem em cena deseja extrair da palavra sua essência máxima, pausadamente, assim se expressou: “Nós, paulistanos da gema [...]”.
O dono desse depoimento, de seu sobrenome, Jazadji, o qual – se já difícil de ser pronunciado por filhos e netos de imigrantes –, jamais o teria sido pelos falantes do nheengatu e, muito menos pelos que, antes da chegada do europeu, habitavam a colina que veio a ser Vila Piratininga e, a partir de 1711, cidade de São Paulo. E se desse modo fosse possível falar, esses sim, muito mais do que ninguém, seriam filhos da gema do solo paulista.
Afinal, quem somos? Para cá afluíram, de forma permanente, os já miscigenados portugueses. Dos navios negreiros que singraram o Atlântico, absorvemos 40% do tráfico africano, de etnias várias. E do encontro de ambos com os nativos, como bem descreve Darcy Ribeiro em seu livro O povo brasileiro, surgimos nós: brasileiros.
Bem mais tarde, neste imenso território, mais particularmente no Centro-Sul, outros rostos vieram a se somar. A partir de 1818, com o estabelecimento da primeira política imigratória, implementada no pós Independência, teve início a imigração propriamente dita, através dos núcleos coloniais. Neles, inicialmente, a presença alemã predominou. Na sequência, outras nacionalidades começaram a aportar, sobretudo a partir da crise do trabalho escravo, num processo que se estendeu, grosso modo, até 1930. A Hospedaria do Imigrante, cravada na cidade de São Paulo, constitui o símbolo maior deste momento histórico, por onde ingressaram nada menos que 68 diferentes nacionalidades.
Todavia, se muitas e diversas foram as procedências, em termos numéricos, é bom que se diga, dos que emigraram para a América no período da chamada Grande Emigração, entre 1871-1920, os EUA absorveram 64,7% do total, a Argentina 15,1%, o Canadá 11,9%, e o Brasil apenas 8,3%. A presença do imigrante não pode ser descolada do contexto. Caso contrário, a partir da ótica de Tabatinga, para citar um caso, poderíamos falar que houve, recentemente, “uma invasão de haitianos”, quando, na verdade, se todos fossem reunidos num estádio de futebol, não passariam de um ínfimo público. Mas a presença do imigrante só fez enriquecer nossa identidade, pois a tornou mais plural.
No pós-guerra, o país tornou-se palco de uma crescente mobilização de sua população interna, amalgamando ainda mais nossos sotaques, ritmos, crenças e nossa culinária. Porém, mais uma vez, não sem a presença do imigrante, embora em outros patamares. Foram trazidos, antes, os refugiados de guerra, mas também chegaram chineses, coreanos, libaneses e, o pouco mencionado, mas expressivo número de portugueses, por volta de cem mil entre os anos de 1974 e 1977, cuja chegada deu-se sem qualquer alarde.
Nas últimas décadas do século XX, presenciamos três movimentos migratórios que não constavam das projeções dos demógrafos: o arrefecimento e redirecionamento das migrações internas; a chegada de imigrantes hispano-americanos e o êxodo dos brasileiros que, há alguns anos já encetaram movimento de retorno.
Finalmente, no fechamento das cortinas do século passado, começaram a chegar refugiados e imigrantes do continente africano. A Casa do Migrante, da Missão Paz, é um microespaço revelador do que vem ocorrendo: Inaugurada em 1978, com capacidade para cem pessoas/dia, acolheu, até 1998, uma média anual de 5% de imigrantes. Este percentual elevou-se para 25% em 2002; 50% em 2004; 70% em 2008 e praticamente a 100% a partir de 2010.
Neste processo de nossa constituição, despontamos no mapa como um povo acolhedor. De fato, o somos. Porém, não podemos estufar o peito em demasia. Foram acalorados os debates, durante a longa crise do trabalho escravo, quando uma elite e seus representantes advogaram pela necessidade de nos “europeizarmos”. Não podemos esquecer os polpudos subsídios que ao longo de um século foram drenados para tal. No pós-guerra, quando os trabalhadores braçais do além-mar já vinham sendo substituídos pelos migrantes internos, reascendeu-se a discussão em torno de quais imigrantes eram desejáveis, pois a industrialização em curso demandava profissionais qualificados. Europeus, sim, mas não mais os pobres para a lavoura.
Atualmente, vivenciamos um contexto “prato-cheio” para reaflorar este debate. A economia em expansão requer mão de obra qualificada, que está chegando e sendo muito bem vinda. Mas há pobres chegando, rostos indígenas, negros e amarelos. Nós, da Missão Paz, que atuamos junto a esses novos imigrantes (no momento 15 nepaleses encontram-se na Casa do Migrante), presenciamos claramente que somos marcados com duas atitudes opostas: acolhedores, é verdade, mas preconceituosos também. Percebemos que o preconceito, a intolerância, rejeição e xenofobia, quando não expressos, estão latentes. Ademais, nem todo imigrante atrai os mesmos holofotes.
Por isso, ao nos depararmos com imigrantes, nossa atitude primeira deve ser a de mirar-nos no espelho para lembrar que, como disse o saudoso José Saramago, “[...] se tu não emigraste, emigrou o teu pai, e se o teu pai não precisou de mudar de sítio foi porque o teu avô, antes dele, não teve outro remédio que ir…”, ou ainda “Que atire a primeira pedra quem nunca teve nódoas de emigração a manchar-lhe a árvore genealógica.”
Não esqueçamos como poucos carregamos tantas nódoas de emigração.
Dirceu Cutti
* Dirceu Cutti – Editor da “Travessia – Revista do Migrante” e assessor da diretoria do Centro de Estudos Migratórios / Missão Paz de São Paulo. www.missaonspaz.org

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